Seria simples. Uma mulher cresce a adorar videojogos e aos poucos vai alimentado o sonho de eventualmente ter um papel nesta indústria. Não é com esta linha de pensamento que todas nós começamos? Seria simples mas, de facto, nem sempre é assim!
À medida que vamos escalando a montanha em direcção a esse sonho, apercebemo-nos que isso poderá implicar estar num campo de batalha constante para provar o nosso valor e sermos levadas a sério. Podemos ser muito apaixonadas, as melhores, as mais experientes, as mais indicadas, as mais profissionais, as “mais” de tudo… E mesmo assim não ser o suficiente.
Quando falamos em assédio e discriminação, sabemos que não são algo exclusivo da indústria dos videojogos – existem em vários sectores do mercado e afeta todas as pessoas. Contudo, este artigo vai focar-se especificamente nas mulheres que costumam ser um dos alvos mais comuns na área dos videojogos.
Assédio é uma realidade que algumas pessoas dificilmente conseguem aceitar que existe, mas quando se revelam casos gigantescos como aconteceu recentemente com a Activision Blizzard, e anteriormente com a Ubisoft e a Riot, torna-se uma linha de coincidências demasiado chocante para se estar a negar. Considero importante estar a fazer este artigo, não para explorar os acontecimentos que envolveram a Blizzard, mas sim para dar a minha perspectiva sobre este assunto, e fazer uma reflexão se o assédio e discriminação têm espaço para acontecer no nosso território português.
Como é óbvio, uma só perspectiva pode ser muito limitada, por isso reuni opiniões e testemunhos de outras pessoas da indústria, de forma a criar uma voz mais colectiva sobre estes assuntos. Espero, acima de tudo, que o meu artigo seja um abre olhos para quem esteja a ler e que faça com que estes temas perdurem nas vossas memórias. O importante é mesmo não esquecer!
A verdade, que muitos já devem saber, é que aquilo que aconteceu na Activision Blizzard é só a ponta do icebergue e de certeza que existem outras empresas que continuam a perpetuar este tipo de ambiente, sejam estas de grande dimensão ou não. Mesmo que haja mulheres a denunciar assédio, que sejam vítimas de discriminação, mesmo que elas tentem falar… Vai sempre existir alguém a desvalorizar aquilo que lhes aconteceu. Devido a isto, é extremamente importante que exista alguém a mostrar compaixão e a ficar do lado da vítima.
Na resposta que a Activision Blizzard deu à acção judicial tomada pelo Departamento da Califórnia, esta inicialmente referiu que as acusações de assédio eram “falsas e distorcidas” e, mesmo quando havia provas concretas, a empresa não deu razão às vítimas. Recentemente, até foi acusada de omitir informações que eram relevantes para as investigações. Se a própria empresa já assume este tipo de atitude, então imaginem certas pessoas de fora.
Neste tipo de situações é preciso uma grande coragem para existir denúncia – muitas mulheres preferem adiar até se sentirem numa posição mais favorável para desabafar. No entanto, essa coragem nem sempre é apoiada e até acaba por ser espezinhada por pessoas com mentalidades machistas, não só por homens como também mulheres. Como assistimos recentemente no movimento #metoo, a denúncia pode resultar em diversos caminhos que nem sempre acabam bem para o lado da vítima.
Por exemplo, se uma mulher denunciar logo na hora, poderá ser acusada de mentir, de só querer atenção e de ser falsa por não estar a apontar nomes. Se a mulher, de facto, apontar nomes, poderá ser criticada porque “esses nomes nunca seriam capazes de fazer tal coisa” e como consequência ainda pode ser processada. Se a mulher só revelar o assédio passado algum tempo, poderá ser questionada da razão de não o ter feito mais cedo. Então… No que ficamos? Como ficamos?
Enquanto consumidora, aquilo que aconteceu na Activision Blizzard afectou-me bastante. Mais para o lado da Activision, porque jogava Call of Duty quando era muito novinha com o meu pai. Nós tínhamos aquele ambiente agradável entre pai e filha, em que um morria no jogo e o outro substituía; havia sempre apoio e ajuda de ambos os lados, o que resultou em memórias muito preciosas para mim. Contudo, quando tomei conhecimento acerca dos casos de assédio parece que estas memórias ganharam um gosto agridoce, porque o ambiente que tinha associado aos jogos da empresa não era o mesmo que as suas funcionárias experienciavam por anos.
Tendo em conta a resposta inicialmente desinteressada por parte da Activision Blizzard em relação às acusações, houve pessoas que tentaram boicotar a empresa ao cancelarem quaisquer associações que tinham com a marca e ao deixarem de comprar os seus videojogos. No entanto, será esta a melhor abordagem e a mais eficaz para chamar a atenção da empresa? Isto quando existem game devs inocentes que também poderão sair prejudicados por algo em que nunca tiveram envolvidos? Bem, existe outras alternativas! Se quiserem realmente ser “eficazes”, têm que ser quase milionários para comprarem as acções da empresa, depois, quando acontecem situações graves como esta, podem optar por largar as acções e provocar um efeito de “queda”. Por outro lado, caso não queiram prejudicar ninguém, sempre que a empresa estiver prestes a anunciar algo grande ou se já tiver um trailer lançado, podem relembrá-las num post ou nessas mesmas publicações sobre os casos de assédio e como precisam de tomar medidas para resolvê-los (tomando do princípio de que ainda nada de relevante foi feito).
Esta última opção é a que eu considero melhor, porque ninguém sai prejudicado e reforça a ideia de que o importante é mesmo não esquecer! E saliento que estas situações se esquecem com uma facilidade assustadora… Estes casos são expostos, dá-se as notícias, desencadeia-se o horror, surgem algumas investigações, mais horror e depois dá-se o silêncio até que a memória desapareça… É um ciclo que se repete sempre!
E depois nós pensamos: se esta realidade existe lá fora, então o que se passará num meio tão pequeno como o de Portugal? Será que o assédio e a discriminação em relação às mulheres têm espaço para acontecer? Em que patamar a nossa indústria se encontra e para onde caminhamos em relação a assuntos como estes?
Várias mulheres optaram por partilhar os seus testemunhos e foram extremamente corajosas em revelar as suas identidades – deixo aqui as suas palavras.
Testemunho #1 – Andreia Mendes (Angelik-Knight)
Produtora de conteúdo e jornalista de videojogos na Squared Potato
Desde cedo que já tinha uma percepção que existia um pouco de descriminação e objectificação da mulher em Jornalismo de Videojogos. Sempre notei que as “grandes” empresas portuguesas desta área tinham as suas redações apenas compostas por elementos do sexo masculino, sendo que as mulheres só eram puxadas para este círculo quando precisavam de contratar apresentadoras. Ao contrário dos homens, que eram valorizados pela sua formação e experiência em Jornalismo, estas mulheres eram escolhidas com base no critério de serem atraentes e carismáticas. O seu currículo e formação nunca foi um factor importante.
No entanto, foi quando estava na reta final da minha licenciatura em Ciências da Comunicação que me apercebi da realidade dura e crua deste sector… Um simples estágio em Jornalismo de Videojogos não seria fácil de arranjar! Enviei email para várias empresas que tinham as condições necessárias para realizar o estágio curricular (neste caso, seria uma morada de sede de empresa e um número de identificação fiscal), mas nenhuma aceitou.
Porém, nem tudo ficou perdido, pois eventualmente o Próximo Nível deu-me a tão desejada oportunidade e esforçou-se em conseguir arranjar alternativas para cumprir os requisitos impostos pela minha universidade. Terminei o estágio e, pouco depois, participei no meu primeiro casting na área de Jornalismo de Videojogos. Calhou ser numa das empresas à qual tinha feito o pedido de estágio. O cargo, pelas indicações, notava-se que era direccionado para ser apresentadora e, no final, vi o padrão a repetir-se novamente… E o pior é que nem fiquei muito admirada. No final, o historial da empresa já era esse!
Será que um dia haverá mudança? Quando é que as mulheres passarão a ser contratadas pelos motivos certos em Jornalismo de Videojogos? E porquê só se lembrarem de nós quando precisam de apresentadoras? Perguntei-me várias vezes.
Apesar de ser licenciada em Ciências da Comunicação e de provar constantemente o meu valor enquanto profissional, já tive alguns indivíduos a colocar os meus conhecimentos em causa e a dizerem-me que o estilo da minha escrita era demasiado simples para algo tão complexo como videojogos. Além disto, já me disseram que só tenho interesse em videojogos para atrair a atenção de nerds “desesperados” e, em raras situações, houve quem me mandasse calar quando relatava a minha experiência com um jogo ou que tentasse presumir que não sabia certas curiosidades mais profundas, e gozasse comigo quando não sabia referir o nome de todas as armas de um jogo… Porque também não era algo “característico de uma mulher”.
Apesar de terem sido raras as vezes em que joguei online, houve uma ocorrência que me fez desistir por completo. Lembro-me que tinha uns 16 anos de idade e decidi experimentar o GTA V Online pela primeira vez. Jogava GTA desde infância e um dos meus maiores desejos era ter a possibilidade de jogar com uma personagem feminina. Quando vi que o GTA Online dava essa possibilidade, não hesitei e criei a minha personagem de sonho, uma mulher super badass! No entanto, assim que entrei para o lobby online, lembro-me que a primeira ocorrência foi ver um jogador a lançar uma chuva de dinheiro para cima da minha personagem. Fiquei muito confusa, mas continuei a jogar! No meio do caos, reparei que esse jogador andava a perseguir constantemente a minha personagem pelo mapa e isto fez com que eu saísse mais cedo do jogo. No final, ele enviou-me uma mensagem com uma abordagem estranha. E o resultado? Nunca mais voltei a jogar GTA Online ou qualquer jogo online. Até porque os jogos singleplayer sempre tiveram um ambiente mais seguro. E, logo naquele momento, fiquei a sentir-me um pouco mal e insegura por ter criado uma personagem feminina, porque eu sabia que se tivesse trocado o género da minha personagem para o masculino, poderia ter evitado esta situação.
Testemunho #2 – Filipa Carvalho (Xip4)
Produtora de conteúdo, streamer, redatora de séries e filmes na MagazineHD, e redatora de videojogos na EPopCulture News
Joguei World of Warcraft (WoW) desde 2005 e já nessa altura tentava sempre camuflar o facto de ser mulher porque sabia que a partir dessa altura, era o início do fim. Já tinha visto com outras mulheres, serem demasiado gentis, oferecerem coisas só por sermos raparigas ou até serem mais benevolentes nos erros (por exemplo, quando erravam algo numa táctica de um boss) e eu simplesmente queria ser tratada como todos, como uma jogadora com skill igual a qualquer outro. Sempre achei que esta “facilitação” que davam só por sermos mulheres era um desrespeito à nossa skill, ou seja, só com a preciosa ajuda dos homens é que conseguíamos lá chegar e tentei ao máximo esconder sempre que era mulher até ser inevitável fazê-lo.
Nunca achei piada que me oferecessem coisas pelo meu género, nem que me facilitassem as coisas por causa disso, mas a verdade é que era muito recorrente. Felizmente, nunca tive grandes problemas e sempre fui muito directa nesta questão, então sempre que alguém tentava ser “extra simpático” comigo eu simplesmente recusava e perguntava se me estava a oferecer aquilo porque pensava que eu não tinha skill para o conseguir sozinha (assim mesmo) e funcionava, mas acredito que para raparigas mais tímidas isto fosse um problema e até pudesse mesmo afastar pessoas mais introvertidas do jogo para não terem que lidar com as abordagens. De qualquer maneira, deixei de jogar em 2012 e, curiosamente, voltei há muito pouco tempo.
Infelizmente, quando soube desta polémica da Blizzard, foi a gota de água e não consigo sequer olhar para o ícone do jogo sem sentir repúdio pelo que fizeram às mulheres que trabalham na indústria. Desinstalei e não sei quando voltarei a Azeroth, mas certamente não será agora, ou provavelmente nunca mais.
Testemunho #3 – Nicole Concha
Produtora de conteúdo, apresentadora na Lisboa Games Week, redatora de videojogos no Moshbit Gaming e na EPopCulture News
Houve uma vez em que participei num torneio num evento por diversão. O torneio era 1v1 de CoD Modern Warfare de 2019, um modo de jogo que não estou habituada, pois geralmente baseia-se em ficar acampado num sítio onde se tenha visibilidade para o spawn point inimigo, leva a conhecimentos desses pontos para esses modos. A minha especialidade sempre foi Gun Game e Free for All, onde estão vários jogadores em campo a lutar todos contra todos e torna mais difícil a existência de campers. Outro ponto contra mim era o jogo ser recente – ainda não conhecia bem os mapas por ter poucas horas de jogo nele. Tendo em conta as circunstâncias, correu-me extremamente mal. Nunca tinha jogado tão mal na minha vida. A minha explicação serviu mesmo para deixar claro que sim, foi uma das piores partidas da minha vida. Mas porque é relevante isso? Porque o meu adversário, ao ver o meu género no fim da partida, quando eu apenas disse “foi um bom jogo” ele respondeu “até não jogas mal para uma mulher”. Sim, no meu pior jogo.
Também em Call of Duty Modern Warfare, a jogar precisamente Gun Game (a minha especialidade), não estava a usar voice chat, mas estavam quatro portugueses no lobby a usar. Eu estava numa kill streak enorme a matar todos sem morrer, ao que começaram portugueses a gritar “é impossível ser uma mulher”, “tem de ser um homem com nome de mulher para enganar”, “é impossível uma mulher saber jogar bem assim”… Entretanto, começaram com ofensas agressivas machistas e abandonaram o lobby.
Já tive pessoas a dizerem em público que, por eu ser mulher, não percebo nada de jogos e que faço conteúdo gaming meramente pelas visualizações e atenção. Como seria de esperar, já tive também as minhas capacidades e conhecimentos na área postos em causa devido ao meu género. Fui a um casting de um programa de conhecimento geral, onde não soube responder a uma pergunta que estava na secção de história, mas era de cariz católico, área que não tenho profundo conhecimento por não ter qualquer tipo de religião. No fim, ao perguntar se me podiam dizer a resposta da pergunta que não sabia, responderam “em vez de jogar joguinhos e porcarias, vá pegar num livro e aprender sobre isso”.
Testemunho #4 – Sofia Mesquita (Rodsiie)
Colaboradora na RankSpot
Já ando nisto dos jogos há alguns anos e já vivenciei algumas experiências boas e outras nem tanto. Venho por aqui falar de uma em particular que me deixou super triste na altura… Era 2015 e estava a jogar Counter-Strike (CS) com o meu irmão a assistir ao meu jogo, mal entrei na call reparei que ao dizer “olá malta” os rapazes mudaram de postura, um deles chegou até a chamar-me um nome em tom de piropo que para eles teve piada, mas para mim sinceramente não, aí o meu irmão já ficou alerta, porque infelizmente sabe como são os rapazes. Antes de começarmos a jogar eles já estavam a fazer-me perguntas descabidas sobre a minha idade, o meu nome, o sítio onde moro e se namorava, perguntas estranhas que aposto que não perguntam a um rapaz. Foi aí que percebi que teria de pedir ao meu irmão para fingir que era ele que estava a jogar por mim e assim ser ele a falar por mim nas calls. Esta situação não aconteceu uma vez, ou duas, acontecia frequentemente e foi o que me fez deixar de jogar CS, o incómodo que sentia.
Sinto também que as mulheres são muitos desvalorizadas em termos de jogabilidade, já cheguei a ouvir por exemplo “olha temos uma rapariga na team vamos perder” o que me faz crer que ainda somos muito discriminadas e muitas vezes injustiçadas, tendo por vezes passado por episódios de má educação e insultos vindos de alguém que não me conhecia.
Infelizmente o mundo dos jogos ainda é um sítio cheio de ódio e de mentalidades retrógradas que nos fazem questionar se vale mesmo a pena estar ali. Um beijinho para ti Angelik-Knight e muito obrigada por nos dares voz e trazeres estes temas super importantes para a comunidade.
Testemunho #5 – Catarina Ferreira (CAT)
Fundadora do Xbox PT Dummies e escritora no GPN
Quanto à Activison/Blizzard, infelizmente, é o cenário habitual de muitas empresas pelo mundo fora. Não é a única, a cultura machista está enraizada em muitas marcas onde não se cria melhores valores ou regras de convivência. Este caso foi dos poucos que acabou por vir a público. Infelizmente, penso que despedir pessoa X ou Y não vai resolver muito, pois o problema é mais profundo. Tem a ver com mentalidades e cultura, e os valores sobre os quais uma empresa é criada ou desenvolvida.
É um problema com raízes muito fortes ainda na sociedade humana, que não se acaba com discursos ou algumas ações menores. É necessário educar as pessoas desde cedo em vários espectros para que se perceba o que é normal ou não, e que certas atitudes serão punidas.
Tomara que muitos destes trabalhadores nunca tivessem acesso a mais nenhum trabalho na indústria, mas não vejo isso a acontecer. Há ainda muito caminho pela frente… E como tudo, esta onda de boicote e horror perante as histórias da Activision/Blizzard eventualmente vai passar, porque as pessoas vão pela moda, pelo momento, e fora deles não se guiam pelos mesmos princípios. É uma luta diária para muitos, especialmente as mulheres, que continuam hoje a lutar contra ideais com séculos de práticas.
Experiência pessoal, desde que comecei a jogar online, na Xbox:
Chamaram-me de “whore” do nada. Outros pediam-me em namoro e perseguiam-me nos jogos online para oferecer power weapons. Cheguei a receber uma mensagem com uma imagem de um pénis. A sorte é que estava desfocada. Tinha 16 anos na altura. Montes de mensagens a perguntar se eu era uma rapariga, como se isso fosse algo importante. Anos a lidar com o mito de “gamer girl” toda despida a jogar. Outros acreditavam que não sabia jogar.
Tenho a sensação que muitos rapazes e homens não gostavam de jogar comigo porque eu ficava quase sempre no topo da equipa com melhor prestação. Quando entrei nos grupos do Facebook de Xbox, portugueses, fartei-me de ser insultada. Era a única fêmea a falar por lá, em grupos com centenas ou milhares de pessoas.
A comunidade sempre foi muito estúpida, entre uns e outros a mandar bocas sobre quem tinha o “que quer que seja” maior nos jogos, basicamente. Sentia-me em minoria. Sentia-me num mundo de homens. Muitos não sabiam lidar com a minha sensibilidade, falavam comigo como se fosse apenas mais um “gajo” e eram brutos. Depois eu respondia e diziam que não era para eu levar a sério. E eu tentava explicar que não deviam falar para uma rapariga da mesma forma que falam para rapazes. Que não é por jogar que sou macho.
Sempre fui marginalizada, nesses primeiros tempos. Se eu queria jogar com alguém, havia quem pensasse que eu queria era festa ou namoro. Por outro lado, cheguei a ser expulsa de um grupo do Facebook depois de membros me terem dito que eu queria era atenção e que era uma virgem a precisar de uma queca. Cheguei a administrar grupo X e Y, mas nunca me respeitavam, nem com “poderes”.
Insinuavam muito que o problema era eu, sempre eu. Sei que tenho feitio lixado, mas eu simplesmente não me sentia respeitada. Em 2015 peguei, mandei tudo pastar e criei o grupo dos Xbox PT Dummies, porque queria um lugar para todos se sentirem bem. Não só mulheres, como novos jogadores, homossexuais, pretos e brancos, porra, queria um sítio saudável… E bom, o resto é história.
Não sei se fiz alguma diferença quer na Xbox, quer em Portugal. Mas sei que passei a ver mais mulheres sem medo de falar e se expor. Conheci por alto muitas que escondiam o seu género. Tal como conheço pessoas que escondem a sua orientação sexual ou etnia por medo. Mas pronto, pelo menos nos Dummies acho que as pessoas sabem que terão sempre quem as defenda e que quem está mal é quem julga e falta ao respeito. E temos todos que tentar criar pequenos portos de abrigo num mundo tão desfasado e cruel.
Testemunho #6 – Joana Sousa
Co-fundadora da Squared Potato
Tinha 8 anos na altura em que arranjei o meu primeiro jogo da Activision. Foi uma alegria e muito celebrado na altura em que até trazia o meu grupo de amigos da escola para casa para jogarmos juntos, ou não fosse este o Spider-Man 2 que só deixou de ser considerado o melhor jogo de Spider-Man após a brilhante entrada da Insomniac.
Desses dias para cá, foi um golpe duro de acompanhar o desfecho trágico desta resistência à luta pela igualdade de género, porque tantas vezes a marca hasteou a bandeira. É como se tivessem humilhado, sexualizado e troçado daquela criança de 8 anos que sem o saber estava a contribuir para o crescente ego desta gentalha.
Vejo isto como uma derrota não só para todas as mulheres, mas sim para toda indústria dos videojogos. Estamos todos no mesmo barco, independentemente do género, numa luta incessante por uma comunidade inclusiva, onde ninguém se sinta deixado para trás, onde todos tenham lugar e as mesmas oportunidades, onde todos se possam revelar verdadeiramente e serem aceites, uma comunidade muito longe das garras de uma sociedade de velhos do Restelo que acham que têm opinião sobre a vida dos outros e como devem vivê-la. Isto é para mim o maior orgulho de fazer parte desta comunidade e vai continuar a sê-lo, porque ao contrário da mentalidade débil que os velhos do Restelo têm de como este mundo funciona, e como a comunicação se trabalha, nós temos agora uma voz que já nenhuma empresa consegue calar. Somos muito maiores que isso. Agora somos nós que impomos às marcas os valores porque se devem guiar, e não o contrário.
A Activision Blizzard não estando connosco no mesmo barco, revela-se estar contra nós. Está contra os próprios valores que vende e que comunica e, perante tamanha traição à comunidade, não vejo como é que no futuro poderemos confiar em qualquer coisa que esta marca comunique.
Este é um golpe que não pode ser deixado impune, tem de servir de exemplo a quem lhe quiser seguir os passos. Deverá ser aplicada a justiça para que se torne uma referência para o futuro. É impossível surgir de cara lavada depois de um escândalo destes, pois são vidas de pessoas que se perdem, famílias que se destroem e que levam esta mágoa até ao caixão. Nenhum pai ou mãe vai verdadeiramente viver por mais um dia que seja após um desfecho trágico destes para a sua filha.
Não podemos deixar que estes meninos que nunca cresceram continuem a brincar aos velhos do Restelo e se sintam impunes, como se fossem intocáveis! Nem com a comunicação que é feita nos videojogos nós brincamos, portanto quanto mais deixar que esta gente, que representa o modelo da indústria brinque com vidas humanas. Por último, o que mais me prende, a ficha que custa a cair, é como é doentio que em pleno 2021 ainda estejamos a ter de gritar do alto dos nossos pulmões por algo tão básico e primário como direitos, igualdade, respeito, justiça da Mulher.
O veredito (dos testemunhos)
Segundo estes testemunhos, podemos concluir que o assédio pode manifestar-se sob várias formas na indústria. A forma mais comum é sem dúvida o assédio online, quando as mulheres jogam jogos online, são levadas a esconderem a sua identidade, para evitarem ser alvo de abordagens machistas e comentários opressores em relação à maneira como jogam. Por trás de um ecrã, alguns jogadores não conhecem limites e, por isso, também tentam fazer perguntas pessoais às mesmas e até oferecer-lhes itens gratuitos em troca de “algo” ou porque pensam que são o elemento mais fraco da equipa. Quando as mulheres mostram as suas habilidades e ganham partidas, surgem relatos de colegas jogadores do género masculino que não levam o resultado de ânimo leve e ficam ofendidos por serem ultrapassados por alguém do sexo oposto.
Quero no entanto também acrescentar que, na área da produção de conteúdo, as mulheres são muitas vezes julgadas pela maneira como se vestem e alvos de fantasia. Fantasia no sentido de outros quererem algo connosco e sentirem que podem ter uma chance de se aproximarem muito de nós. Este tipo de indivíduos seguem o nosso trabalho e dão-nos o seu apoio apenas com o mero objectivo compulsivo de receberem atenção da nossa parte. No entanto, quando descobrem que as suas streamers ou youtubers favoritas possuem namorados, é muito comum deixarem de acompanhar o trabalho das mesmas para irem em busca de outra fantasia. Em casos extremos, o assédio online pode transformar-se em stalk e piorar também com a perseguição na vida real. Por estas razões, algumas mulheres são levadas a desistir do streaming, da produção de conteúdo ou até de jogar jogos online, para protegerem as suas vidas pessoais.
Por fim, verifica-se que existe discriminação também em relação a trabalhadoras da indústria, na medida em que alguns homens simplesmente não são capazes de aceitar a nossa paixão por videojogos, preferem antes atirar-nos à cara que só estamos a trabalhar nesta indústria para chamarmos a atenção de “nerds” e também chegam a colocar as nossas capacidades em causa. No que toca a Jornalismo de Videojogos, também é muito comum empresas estabelecidas só se lembrarem do género feminino quando precisam de contratar apresentadoras, acima de tudo atraentes e carismáticas, para estarem à frente das câmaras. Ao contrário do que acontece com a maioria dos nossos colegas do sexo masculino, que são valorizados pela sua formação e experiência em Jornalismo, estas mulheres nem sempre recebem o mesmo tratamento durante o processo de candidatura.
Desenvolvimento de Videojogos em Portugal
E na área de desenvolvimento de videojogos? Como está Portugal? Obviamente que não se encontra no mesmo patamar que a Activision Blizzard, pois por enquanto a nossa indústria é demasiado pequena para casos tão extremos de assédio e discriminação ocorrerem.
Contudo, muito recentemente, houve um acontecimento que sobressaltou algumas pessoas da nossa comunidade e, acima de tudo, game devs. No fulcro está uma universidade portuguesa que incentivou e até promoveu um remake de Paradise Café.
Paradise Café é um jogo português de autor desconhecido, publicado em 1985 pela Damatta, que envolve controlarmos um indivíduo que anda nas ruas a participar em actos de criminalidade, prostituição e em negócios de drogas. No entanto, algumas abordagens mais polémicas incluem a opção de violar uma senhora idosa e o aparecimento de uma personagem intitulada de Reinaldo. Esta personagem tem um cameo que envolve sodomizar o protagonista, como forma de castigo, devido a este não ter dinheiro suficiente para pagar os serviços a uma prostituta. O conceito de “Reinaldo” foi retirado a partir de um rumor português que estava direcionado a destruir a imagem de empoderamento feminino das Doce, consideradas a primeira “girl band” de Portugal. Segundo o rumor, uma das jovens teria sido encaminhada para uma urgência hospitalar, em consequência de um envolvimento sexual com um futebolista chamado Reinaldo.
Devido à sua natureza polémica e vertente “cómica”, Paradise Café é considerado um marco histórico para a indústria de desenvolvimento de videojogos portuguesa, sendo passado como um exemplo em algumas lições didáticas. Tal é esse impacto que, à medida que escrevo este artigo, o jogo está a ser refeito por um grupo de estudantes de uma universidade portuguesa.
Paradise Café é um jogo antigo e por isso não é de admirar que tenha conceitos um pouco arcaicos e ultrapassados. Por exemplo, a normalização do desprezo do sexo feminino nos videojogos é algo real e que acontece ainda em jogos actuais, apesar de existir cada vez mais pessoas e estúdios a combater esta tendência. De facto, constata-se que cerca de 50% da comunidade gaming europeia seja composta por jogadoras, de acordo com a ISFE (Federação de Software Interactivo da Europa) e a EGDF (Federação Europeia de Produtores de Jogos). No entanto, quando se aceita e promovem projectos com o cariz deste em contexto académico, soa sempre um pouco estranho para quem olha de fora.
Para falar melhor sobre estes assuntos, tive o privilégio de estar uma hora a conversar com a nossa rainha do game dev, a Mafalda Duarte, que é diretora administrativa e produtora na Nerd Monkeys, e embaixadora da organização Women in Games.
Fica aqui a sua perspetiva resumida em relação a estes temas:
Em relação aos casos de assédio na Activision Blizzard, Mafalda Duarte acredita que existem várias camadas, a camada do género e do vício/competitividade no trabalho que é algo tão característico nos Estados Unidos, tal como a cultura dos “Frat Boys”, que não é tão vincada na Europa. Contudo, hoje em dia, quando as pessoas pensam em assédio associam sempre a algo sexual, quando o conceito possui muito mais abrangência. Por exemplo, assédio também pode surgir em forma de bullying e na desvalorização da importância em existir opiniões diferentes. A Mafalda também salienta que normalmente as pessoas só se lembram de falar mais seriamente sobre assédio quando chega a casos extremos ao ponto de colocar a vida de alguém em risco ou quando já existem mortes envolvidas.
A desvalorização do que acontece às vítimas, por vezes está associada à cultura de trabalho e competitividade dessas empresas. A falta de mulheres e outras minorias em cargos de liderança frequentemente são um factor para as mesmas terem receio de se chegarem à frente e darem voz às suas opiniões, medo de serem rebaixadas, alvos de gozo e brincadeira por parte dos colegas. Mafalda refere que alguns homens que agem dessa maneira em relação às mulheres pensam que é tudo muito normal, não reconhecendo essa atitude como um problema.
Acabar com o assédio e discriminação não implica só remover algumas “maçãs podres” da empresa, até porque essas mesmas “maçãs” podem eventualmente arranjar trabalho em outros lugares. Para o assédio perpetuar durante tanto tempo, significa que existe um “deixar estar” por parte de várias camadas de pessoas que lá trabalham e as mulheres sentem que não conseguem entrar em contacto com os seus superiores para denunciar estes problemas, porque muitas vezes não vai dar em nada.
Mafalda salienta que estas empresas preferem estar a par de casos concretos de assédio, mas não de abordagens que, apesar de serem estranhas, não são muito relevantes em termos de dimensão. É necessário que estas empresas estejam atentas a padrões de assédio, sendo estes mais “insignificantes” ou não, se existe repetição e uma cultura evidentemente machista na empresa, quer dizer que algo não está bem e precisa de ser resolvido.
Em contexto nacional, no que toca ao ensino de desenvolvimento dos videojogos, Mafalda já ouviu alguns contos de terror. Por exemplo, quando professores e alunos (maioritariamente do sexo masculino) se apercebem que não há muitas raparigas na turma, fazem comentários discriminatórios como “as mulheres não se interessam por videojogos!”, ou então quando estes reparam nas estatísticas de que metade das jogadoras são femininas, tentam justificar que estão a juntar jogos mobile à fórmula e que esse tipo de jogos “não são jogos a sério”. Mafalda questiona:
“Porque é que as mulheres que jogam jogos mobile não podem ser consideradas jogadoras, quando esse tipo de jogos ocupam uma área tão grande do mercado gaming? Porque é ainda tão estranho uma mulher querer seguir carreira em desenvolvimento de videojogos com foco no segmento mobile ou jogos mais casuais? Esta é uma das várias áreas de diversidade de pensar e fazer videojogos, mas obviamente mulheres pertencem a todas elas. Em vez de passarem o Paradise Café, como exemplo nacional, não haverá mais e melhores exemplos a seguir?”
Focando no Paradise Café, Mafalda considera que é uma vergonha uma faculdade ter promovido esse jogo da maneira como o fez e depois retirar tudo, e simplesmente não falar mais disso. E o pior? A faculdade conseguir sair impune e ter zero consequências. Quando se fala em consequências não se trata de manchar a imagem ou despedir alguém, mas sim de reconhecer os erros, admiti-los e falar publicamente sobre o que aconteceu, até porque se isso não acontecer a faculdade está a passar a imagem de que não foi um problema.
Em defesa da faculdade, o grupo de estudantes responsáveis pela recriação do Paradise Café explicaram numa entrevista a sua perspectiva. Quando estavam inicialmente a desenvolver o jogo era por trabalho remoto e que, quando apresentaram a proposta na universidade, ninguém achou aquilo um problema. A intenção deles era refazer o jogo num tom de crítica, em vez de gozo. No entanto, Mafalda refere que o vídeo de jogabilidade não passou essa mensagem, notando-se que foi criado com a intenção de ser provocador e de meter “piada”.
Alguns dos comentários feitos entre professores e outras pessoas também não vieram a ajudar, pois mostravam um sentimento estranho de nostalgia pelo jogo, de positivismo e entusiasmo. Mafalda revela que, entretanto, estes comentários já foram apagados pela universidade, mas que, na altura quando os leu, achou no mínimo desatento e sem noção por parte da entidade em estar a comunicar a mensagem desta maneira, e do que isso poderia significar. No fundo, a universidade estava a partilhar e a promover o jogo numa luz positiva.
Para além da opção de abuso sexual que está presente em Paradise Café, Mafalda também aponta que este jogo lhe desperta revolta, porque inclui uma cena que ajuda a mitificar um rumor falso que atormentou a vida das “Doce” e acabou com a carreira do grupo musical.
Os alunos também tiveram um pouco de azar ao estarem a desconstruir este jogo, sem saber o que ele significava na sua totalidade, e de isto acontecer no mesmo ano em que acaba de estrear “Bem Bom”, o filme que é quase uma biografia em relação à carreira das Doce, pretendendo igualmente mostrar o machismo que o grupo teve que enfrentar na época e a verdade por trás deste rumor. Mafalda acredita que, durante as aulas, não houve nenhum professor que ensinasse a estes alunos as nuances e os significados culturais que estavam associados ao Paradise Café e é aqui que a universidade falha.
A Mafalda destaca que não é o Paradise Café que vai fazer a nossa indústria mais machista, pois é só uma situação que saiu cá para fora, mas depois ficamos a pensar… quais serão as camadas de maneira de pensar e ideologia que terão ocorrido para isto sair cá para fora? Porque significa que um projeto como este deve ter passado por imensos professores, por imensos olhos, por um coordenador de curso para depois estar na página oficial da universidade. E, depois das críticas negativas, a universidade simplesmente ter apagado as publicações com zero esclarecimento, é um pouco preocupante. Sem certezas, Mafalda refere que ouviu dizer que o departamento da universidade estava a tentar “deixar passar o drama”, porque eventualmente as pessoas iam esquecer-se disso e “pronto”, a melhor maneira era “não falar disso, não alimentar o drama”.
A palavra “drama” afecta muito Mafalda, porque é uma expressão que desvaloriza todos os sentimentos de mulheres não só neste contexto, mas também possivelmente em local de trabalho ou em situações de bullying. Faz exactamente o mesmo círculo! “Ah, elas estão a ser dramáticas, estão a ser emocionais… estão num daqueles dias!”. Eu a Mafalda concordámos que esta desvalorização por parte da universidade faz lembrar um pouco a resposta inicial que a Activision Blizzard deu em relação às recentes acusações. No entanto, o nosso meio ainda é muito pequeno para acontecer os casos extremos de assédio que ocorrem lá fora, a nossa cultura é diferente… mas também puxa muito por elementos católicos e machistas. Em Portugal, por vezes ainda há muito a abordagem de que “jogos não são para meninas” e que “não é uma área para pessoas deste género”.
Infelizmente, Mafalda admite que já ouviu falar de casos de alunas portuguesas que seguiram uma licenciatura na área dos videojogos e se sentiram desconfortáveis durante as aulas, na maneira como certos colegas interagiam ou pelo facto de serem a única rapariga presente, e que depois saíram da indústria completamente, porque não se sentiram integradas. Não se trata destas raparigas “não serem fortes o suficiente” para estar na indústria, trata-se destas raparigas nem sequer terem o espaço de experimentar… de perceber se era isto o que queriam, se era isto que fazia sentido. Não havia este espaço, porque estas raparigas sentiam-se logo excluídas desde início. A Mafalda sente que é muito problemático as raparigas sentirem que este espaço não é para elas, porque é que não pode ser para elas?
No que toca a aumentar a presença das mulheres na indústria, Mafalda não crê que cotas sejam automaticamente a solução, mas que talvez seja um fator importante em empresas grandes. O fator natural costuma ser que, quanto maior for o cargo e a responsabilidade, mais depressa as pessoas contratam alguém com quem têm mais afinidade, que já conhecem o desempenho ou que já tenham trabalhado ao lado delas. Se as empresas se habituam a trabalhar sempre com as mesmas pessoas, por vezes até só com “homens brancos”, estão a fechar-se dentro de um círculo, onde todos partilham o mesmo tipo de mentalidades. Caso não exista alguém a tentar quebrar o círculo, essas pessoas não vão querer sair fora da sua zona de conforto e procurar alguém diferente.
O mundo lá fora é tão grande e existem imensas pessoas competentes para todo o tipo de cargos, mas as empresas têm que fazer o esforço de procurarem profissionais para trazerem mais valor à equipa. É muito mais fácil se as empresas tiverem isto de raiz em mente, porque assim significa que possuem logo certos valores que vão promover a receção de pessoas com diferentes backgrounds, promover um ambiente de segurança, porque sabemos que essas empresas procuram pessoas competentes e também se dão ao trabalho de fomentar a diversidade na equipa para trazer perspetivas diferentes.
Em relação ao futuro, Mafalda ainda dá uma abordagem positiva ao referir que a nossa indústria está muito mais atenta a estes problemas e que quando situações de assédio, de facto, acontecem são logo chamadas à atenção, por isso as pessoas sentem-se muito mais seguras para falar sobre estas questões. Esta conjuntura pode ajudar a prevenir que o assédio e discriminação aconteçam no futuro ou pelo menos com menor gravidade, mas Mafalda acha que estes problemas não vão ficar logo resolvidos de um dia para o outro, porque é algo que está infelizmente embrenhado na nossa cultura enquanto sociedade.
Entretanto, também tive a honra de conhecer a opinião da Catarina Lopes, que é programadora e artista técnica no notagamestudio. Deixo aqui as suas palavras:
O que aconteceu na Blizzard choca-me, mas não me surpreende. Já há muitos anos que se vê e se fala de ambientes tóxicos dentro de vários estúdios desta indústria (quer sejam AAA ou indie). Infelizmente é preciso estas situações chegarem a um ponto extremo para serem levadas a sério.
A minha experiência como programadora em Portugal tem sido, felizmente, maioritariamente positiva. Tenho tido a sorte de estar (quase) sempre rodeada de bons profissionais e colegas, mas apesar disso não é incomum o ocasional comentário desnecessário ou a piadinha sexista, algo que tenho testemunhado e experienciado desde que entrei na licenciatura. Estes tipos de comportamentos não ocorrem apenas em grandes estúdios ou num contexto profissional. São comportamentos que se perpetuam desde cedo em licenciaturas ou cursos da área.
Penso que em Portugal também temos a sorte de ainda ter uma indústria (e comunidade) mais pequena, o que facilita a discussão destes tópicos. Há também uma grande abertura. No entanto, é também necessário que pessoas em posições de poder comecem a levar a sério os relatos e que existam repercussões para quem tem esse tipo de conduta imprópria.
O primeiro passo para resolver este tipo de situações é saber que elas existem, e por isso é importante discutir estes assuntos de uma forma aberta e, acima de tudo, ouvir as vozes das mulheres que trazem à luz a existência deste tipo de comportamentos dentro da comunidade.
Quanto ao Paradise Café: faz parte da história dos videojogos em Portugal, não vejo nenhum problema no jogo ser mencionado e discutido num contexto de aula. No entanto, não consigo encontrar nenhuma justificação para a criação de um remake do mesmo. Vi várias pessoas a tentar justificar dizendo que o remake pode ser usado como um caso de estudo: na criação deste tipo de mecânicas? Porquê deste jogo? Não foi particularmente inovador nesse aspeto, além de que podiam ter pegado na mecânica e adaptar a um jogo original. Por uma questão de acessibilidade? Qualquer um pode fazer download do jogo e correr num emulador online. Como caso de estudo? Mais uma vez, o jogo já existe, não me parece que o reconstruir do zero vá trazer algo de novo à discussão. A única que me parece justificável seria no caso de um remix que funcione como crítica ao original, caso contrário serve apenas para glorificar o jogo original. Embora os autores do jogo defendam que se trata deste último ponto, não foi essa a mensagem que passou no trailer (que foi partilhado nas redes sociais do curso). Talvez no futuro, caso o jogo acabe por ser lançado, se possa fazer uma nova apreciação do mesmo.
Concluindo…
Podemos dizer que Portugal ainda é um meio muito pequeno para casos tão extremos de assédio acontecerem na indústria dos videojogos. No entanto, infelizmente, existe alguma discriminação e assédio em relação às mulheres, seja enquanto jogadoras online, estudantes, produtoras de conteúdo ou trabalhadoras na área. Aquilo que aconteceu na Activision Blizzard veio a relembrar-nos desta triste realidade em larga dimensão, mas também mostrou-nos que casos de assédio e discriminação estão a ser cada vez mais reportados e, quando de facto saem cá para fora, existem multidões de pessoas a reprimirem este tipo de atitudes. Devido a isto, acredito que, no futuro, certas pessoas talvez pensem duas vezes antes de tomarem atitudes depreciativas em relação às mulheres e que casos de assédio possam ocorrer com menos frequência… idealmente até, deixarem de acontecer.
Penso que é importante para nós, enquanto mulheres, também marcarmos a nossa posição e lutarmos contra estas injustiças até realmente existir mudança. Contudo, antes de haver mudança, surge um passo igualmente difícil que é: reconhecer a existência do problema. É neste ponto que muitas pessoas, empresas e entidades falham, e por isso o resto fica ainda por acontecer. Como é óbvio, não são todos os que têm este tipo de mentalidade antiquada em relação ao ser humano do sexo feminino, aliás quero acreditar que a maioria está ao nosso lado e também a lutar pela mudança.
Porém, existem pessoas que são cúmplices destas situações e nada fazem para impedir. A vocês, peço-vos que tomem acção porque por vezes uma simples palavra, logo no momento, pode fazer toda a diferença. Sempre que uma mulher junta coragem para denunciar discriminação ou assédio, por favor, não fiquem imediatamente na ofensiva, nem desvalorizem ou distorçam as suas palavras. Sei que não deve ser fácil ouvir estas denúncias, mas acreditem que estar no papel de contá-las é muito mais complicado. As vítimas estão a mostrar um lado vulnerável, que mexe com as suas emoções, e o mínimo que podem fazer é tentar mostrar compreensão ou dar algum apoio. E se virem um caso de injustiça, discriminação ou assédio, não fiquem apenas a assistir, ajudem. Poderão estar a salvar uma vida!
Quero muito que as mudanças comecem a surgir em breve, porque sei que existem muitas mulheres que estão a lutar contra estes problemas há imenso tempo. Algumas delas estão neste artigo, mas existem outras que por enquanto não são tão sonoras. Espero sinceramente que possam ter aprendido algo de novo com as minhas palavras e com as várias perspectivas que por cá passaram. Estou agradecida, do fundo do coração, por todo o apoio que recebi até agora e principalmente por estas mulheres incríveis terem a coragem de partilhar as suas experiências neste artigo, ao meu lado.