Björn Andrésen

Muitos conhecem-no de Morte em Veneza. Outros, de Midsommar. Mas poucos conhecem a sua verdadeira história – ou, pelo menos, não até ao lançamento do seu mediático documentário há 3 anos atrás. 

No entanto, este artigo não tem como intenção focar-se na história de vida de Björn Andrésen, conhecido pelo “O Rapaz Mais Bonito do Mundo”, por muito fascinante (e triste) que esta seja. Para isso, recomendo-vos o referido documentário e alguns vídeos disponíveis no YouTube que certamente vos satisfarão a curiosidade.

Em vez disso, neste artigo pretendo apenas contar-vos a história do fenómeno bishounen, explorando a influência de Björn na cultura popular japonesa e como este viria a dar forma ao conceito.

Björn Andrésen nos dias de hoje

O início

Björn Johan Andrésen nasceu em 1955 na Suécia, filho de mãe solteira, sem nunca ter conhecido o pai. Foi criado pela avó depois de a sua mãe ter sido encontrada sem vida na floresta, tinha ele 10 anos, e foi esta avó, que trabalhava no mundo do cinema, que o incentivou a tornar-se actor.

Björn com a avó numa revista japonesa

Avancemos para 1971. Björn tinha apenas 15 anos e contava com uma única experiência de actuação no currículo. Quando o realizador italiano Lucino Visconti lhe colocou os olhos em cima, não teve dúvidas de que este era o seu Tadzio – o rapaz pelo qual a personagem principal do filme Morte em Veneza, uma adaptação do livro do mesmo nome, escrito por Thomas Mann em 1912 – se torna obcecado durante umas férias em Itália. 

Morte em Veneza 1971 Tadzio Björn Andrésen
Björn Andrésen interpreta Tadzio em Morte em Veneza (1971)

Björn irradiava os maneirismos, elegância natural e pureza angelical que Mann descreve na sua história. Não só era Tadzio descendente da realeza polaca, mas também detentor de uma beleza extraordinária que deixava até homens adultos rendidos aos seus pés. Uma versão masculina de Lolita, se assim o quiserem chamar.

Morte em Veneza tornou-se um sucesso. Ninguém esperava que o papel de Björn como Tadzio lhe valesse reconhecimento internacional, mas foi o que aconteceu assim que o filme estreou no ano seguinte em Cannes. 

Luchino Visconti Björn Andrésen Morte em Veneza (1971)
Björn Andrésen com Luchino Visconti, realizador de Morte em Veneza (1971)

Apelidando-o de “O Rapaz Mais Bonito do Mundo”, Visconti talvez não tivesse ideia de como isso viria a mudar a vida do actor (e agora músico). Mas a verdade é que, a partir daí, Björn nunca mais teve descanso.

Japão

A sua aparência etérea encantava tudo e todos, mas especialmente o Japão, onde Björn teve uma passagem bastante marcante. 

O estúdio enviou-o para o país pouco depois da estreia de Morte em Veneza, numa tentativa de promover o filme. Esta temporada da vida de Björn foi pontuada por participações em inúmeros programas de televisão, anúncios, capas de revista, e em tudo o quanto eram meios de comunicação. Ninguém conseguia ficar-lhe indiferente.

Logo à chegada em Tóquio, o rapaz foi acostado por centenas de fãs, na sua maioria do sexo feminino, aos gritos e em plena histeria. Era como se estivessem na presença de um ídolo – e foi isso mesmo que Björn acabou por se tornar, gravando algumas músicas antes de regressar à Europa. Um dos primeiros artistas do mundo ocidental a fazê-lo.

E se Björn já tinha conquistado o resto do mundo, foi em terras nipónicas que a sua aparência veio a ter repercussões extraordinárias, mais precisamente no mundo da arte.

Bishounen

Os aficionados de anime e manga certamente estarão familiarizados com o termo “bishounen” (também escrito “bishōnen” e por vezes abreviado para “bishie”), usado para descrever um “lindo jovem rapaz” caracterizado por uma beleza única e andrógena – um estilo maioritariamente presente em animes e mangas dos géneros shoujo e yaoi. Só talvez não saibam a sua origem e o quão antiga realmente é.

Antiguidade

Composto pelos caracteres chineses que significam “lindo” e “rapaz/juventude”, a palavra bishounen vem a ser usada na cultura popular japonesa desde 1829, onde apareceu pela primeira vez no título do livro Kinse setsu bishōnen roku. Mas há registos de menções da mesma que remontam ao século IX, onde a primeira real instância da palavra se encontra no poema Os Oito Imortais da Taça de Vinho, durante a Dinastia de Tang, escrito por Du Fu para descrever um lindo jovem rapaz.

Por exemplo, na obra de literatura japonesa O Conto de Genji (Genji Monogatari), escrito no início do século XI pela fidalga Murasaki Shikibu e considerado um dos primeiros (se não o primeiro) romances do mundo, a personagem principal Hiraku Genji, filho do emperador, tem “uma figura tão atraente que outros homens desejavam vê-lo como uma mulher.” Apesar de nunca ser apelidado de “bishounen” ao longo da narração, podemos interpretar que o mesmo personifica o termo, até porque adaptações modernas do conto constantemente mostram Genji como um bishounen:

Também durante o período Heian (entre 794 e 1185), temos o exemplo dos “chigo”, jovens monges ou pajens de templo, que se tornaram numa parte muito importante da vida monástica budista. Eram crianças de famílias abastadas, escolhidas particularmente pela sua beleza e mais tarde adornados com maquilhagem à semelhança das senhoras da corte, sem nunca raparem o cabelo, ao contrário dos monges. Vestiam-se com roupas de tons vibrantes e tecidos delicados e serviam os monges, seus professores (ou mestres), em troca de educação, abrigo e necessidades básicas.

Devido à sua aparência feminina e delicada, chigos assumiam frequentemente o papel de mulher dentro dos templos, satisfazendo os prazeres dos monges e estando à sua mercê. Ilustrações destas crianças eram comuns na literatura medieval e arte budista da altura.

Livro dos Acólitos (Era Meiji, Período Edo)
Cópia do século XIX de uma das mais antigas e famosas ilustrações das relações homosexuais no Japão (nanshoku), datada de 1321 e preservada em Sanbo-in, no templo Daigo-ji, Kyoto.

Já durante o período Edo (1603-1867), podemos observar o nascimento dos “onnagata” no teatro kabuki. Onnagata eram actores masculinos escolhidos pelas suas qualidades mais femininas para interpretar papéis femininos – estes estudavam os maneirismos das mulheres e eram admirados pelas mesmas como pilares de beleza e moda feminina.

O actor onnagata Noshio, aqui no papel da cortesã Okaru (amante de Kanpei) na peça The Treasury of Loyal Retainers (Kanadehon Chūshingura 仮名手本忠臣蔵)

Inspirados pelos onnagata, os “wakashū” eram adolescentes entre os 12 e os 20 anos, cujo estatuto social ainda não tinha sido solidificado e cujos atributos se prendiam muito com a qualidade feminina, com os arranjos florais, maquilhagem e os kimonos com mangas mais compridas e abertas. Além disso, distinguiam-se pelo corte de cabelo conhecido como maegami, em que uma parte no topo da cabeça era rapada, deixando mechas compridas à frente e dos lados. 

Eram admirados e cobiçados tanto por homens como mulheres, e são uma das maiores evidências da presença de homosexualidade na história do Japão.

Pintura de Suzuki Harunobu (1768), ilustrando um wakashū (direita) com a sua amante ou cortesã (esquerda)

Com a Restauração Meiji em 1868, o país restabeleceu o regime imperial e procurou afastar-se do seu passado feudal. Ao mesmo tempo, implementou ideias do Ocidente, o que viria a ter um grande impacto nos estereótipos masculinos e femininos estabelecidos até aí. O ênfase nas relações heterossexuais e no papel da mulher na sociedade ofuscava, assim, a estética masculina presente nos períodos anteriores.

Modernidade

Muitos homens resistiram a esta revolução de géneros e à idolatração do amor pelas mulheres, tanto que a admiração pela beleza masculina jovem continuou até ao início do século XX. O conceito era frequentemente explorado tanto na literatura como na arte, e é neste período que podemos claramente delinear os primórdios do termo “bishounen”.

Mas com o período Showa (1926-1989) e, mais especificamente, com a derrota na Guerra Pacífico-Asiática, uma nova onda de censura veio a limitar, mais uma vez, a exposição a entretenimento de cariz frívolo, ao mesmo tempo que enfatizava o conceito de homem como ser forte e másculo.

Foi apenas nos anos 50 que começaram a re-emergir representações do bishounen: Miwa Akihiro foi um dos primeiros entertainers a ganhar popularidade pela sua beleza andrógena, algo que viria a captar o interesse público em grande escala. Seguiu-se Peter (Shinnosuke Ikehata), conhecido pelos japoneses em particular pelo seu papel no filme artístico “Funeral Parade of Roses”, e cujo nome o mesmo tinha escolhido como homenagem a Peter Pan.

Year 24 Group

Duas décadas depois, temos a idade de ouro das mangas shoujo, altura em que foi formado o Year 24 Group. Tratava-se de um grupo de mangakas do sexo feminino, cujos trabalhos (incluindo os animes neles inspirados) são considerados clássicos do género shoujo com estilos artísticos e narrativos mais complexos, e que vieram a influenciar todas as séries modernas que temos hoje em dia.

Nomes associados a este grupo incluem Yasuko Aoike, Moto Hagio, Riyoko Ikeda, Toshie Kihara, Minori Kimura, Yumiko Ōshima, Nanae Sasaya, Keiko Takemiya, Mineko Yamada e Ryōko Yamagishi.

Keiko Takemiya
Moto Hagio
Riyoko Ikeda
Nanae Sasaya
Toshie Kihara

Os personagens masculinos que estas mangakas colocavam nas páginas vieram, mais uma vez, a reinventar o conceito de bishounen para o termo que melhor conhecemos hoje em dia: rapazes de corpos esbeltos, membros longos, traços faciais angulares, olhos grandes e brilhantes, pestanas longas, lábios sensuais, pele de porcelana, cabelos luxuosos, roupas extravagantes e uma clara ambiguidade sexual denotada na sua aparência afeminada (que actualmente não é considerada tão chocante e vanguardista como era na época).

Howl (Howl’s Moving Castle)

Exemplos concretos desta influência podem ser vistos em:

  • Howl de Howl’s Moving Castle,
  • Lelouch de Code Geass,
  • Su-Won de Yona of the Dawn,
  • Tamaki de Ouran High School Host Club,
  • Tomoe de Kamisama Kiss,
  • Yuki de Fruits Basket,
  • Hanabusa de Vampire Knight,
  • Yue de Cardcaptor Sakura,
  • Sesshomaru de Inuyasha,
  • Char de Gundam.
Su-Won (Yona of the Dawn)

Aquando a sua concepção, estes personagens ganharam imensa tração não só com o público feminino mas também com a comunidade gay. Afinal, tratavam-se de uma completa revolução em relação ao tipo de protagonistas e interesses amorosos que todos conheciam: másculos, robustos, rudes e violentos. 

Guts (Berserk) é o completo oposto de personagens bishounen

Os bishounen, para além de fisicamente estonteantes, divergiam dos seus predecessores intelectual e psicologicamente: estavam em contacto com o seu lado feminino e com as suas emoções, tinham hobbies e paixões consideradas mais femininas, e emulavam o parceiro perfeito em várias outras vertentes. Sabendo tudo isto, não é difícil perceber o seu apelo e o seu impacto no mundo criativo japonês e além fronteiras, ainda hoje.

A arte destas mangakas foi maioritariamente inspirada em ícones internacionais do sexo masculino que apresentavam qualidades mais femininas, como por exemplo, David Bowie e, claro, Björn Andresen. Este último continua a ser a influência mais citada por criativos durante a sua jornada artística.

David Bowie

Riyoko Ikeda e Keiko Takemiya

A influência de Björn Anderssen no Japão nos anos 70 não poderia ser explorada sem mencionar Riyoko Ikeda e Keiko Takemiya, duas das maiores mangakas de todos os tempos e membros do mencionado Year 24 Group.

Riyoko Ikeda é responsável pela manga/anime Berusaiyu no Bara (A Rosa de Versailles), cuja personagem principal, Lady Oscar, é baseada em Tadzio. Ikeda criou-a depois de ter ficado fascinada com a aparência do rapaz em Morte em Veneza, mencionando que o “ar de tristeza” de Björn a levou a ficar ainda mais fascinada.

Comparação entre Björn Andrésen e Lady Oscar, personagem de Berusaiyu no Bara (A Rosa de Versailles)

“Penso que todos as mangakas são inspiradas por ele a um nível mais profundo. Cada uma de nós, de diferentes formas. Lady Oscar, na minha manga “A Rosa de Versailles”, é uma rapariga que se veste de rapaz. A personagem é completamente baseada no Björn. Ele foi o modelo. Há quarenta ou quarenta e cinco anos que a desenho.”

Também outra grande mangaka, Keiko Takemiya, se inspirou bastante em Tadzio (e Björn) quando criou as suas personagens Gilbert Cocteau na manga yaoi Kaze to Ki no Uta (A Canção do Vento e das Árvores) e Jomy Marcus Shin em Terra… E (Destino Terra). 

Comparação entre a personagem Gilbert Cocteau (Kaze no Ki no Uta) e Björn Andrésen

Depois de décadas, ainda hoje é possível ver a marca de Björn nos géneros shoujo e yaoi (especialmente), onde os bishounen continuam a ser dos elementos mais populares pelo público. Caso encontres um personagem de cabelo loiro, encaracolado ou ondulado, e de uma beleza quase surreal, é bastante provável que tenha sido inspirado direta ou indiretamente por Björn.

Conclusão

No seu livro Death in Venice, Thomas Mann escreve sobre Tadzio: “… tendo cabelo da cor do mel, como um deus da mitologia grega. E o rapaz não é de todo humano, mas sim um anjo da morte.” Seria difícil encontrar alguém cuja descrição física (e espiritual) pudesse fazer jus a tais palavras, mas Visconti acreditava tê-lo conseguido quando viu Björn pela primeira vez. E a sua opinião não era única – de facto, tornou-se universal.

Björn Andrésen em Morte em Veneza (1971)

No entanto, é importante frisar que Björn não é a verdadeira origem do bishounen e sim o catalista que viria a popularizar este conceito na cultura japonesa e além fronteiras, levando a um autêntico efeito bola de neve que permitiu não só a aceitação, mas também a popularização de personagens masculinos visualmente andrógenos e em contacto com o seu lado feminino – algo completamente novo no mundo da manga e anime na altura, especialmente numa sociedade algo tradicional como a japonesa.

Björn Andrésen, pintura de Riyoko Ikeda

Hoje em dia, Björn está de volta ao seu país de origem, Suécia, sem quaisquer intenções de voltar ao estrelato. Mas a sua influência permanece, tal como a sua incrível jornada, e sem ele talvez nunca tivéssemos tido personagens tão marcantes e tocantes como Lady Oscar, Gilbert ou Howl nas nossas vidas.