A nova série da Netflix, Emily em Paris, estreou no dia 2 de Outubro e prometia uma comédia feel-good para os dias de quarentena… Mas será que conseguiu?
(Esta análise contém spoilers)
A história
Emily em Paris segue uma jovem americana que se muda para Paris quando é transferida para uma agência de marketing francesa, o que leva a todo o tipo de situações caricatas.
O problema
A série peca pela sua falta de autenticidade e originalidade no geral. Depende demasiado de estereótipos tanto franceses (e europeus, em geral) como americanos e até asiáticos, para criar piadas que já vimos e ouvimos recriadas dezenas de vezes. E fá-lo constantemente sem qualquer remorso.
Não admira que os críticos e audiência franceses tenham odiado completamente esta série; não é preciso ser do país para nos apercebermos o quão ofensiva e ridícula é.
Emily em Paris poderia, ao menos, ter ido pelo caminho de self-awareness, gozando consigo própria – mas não. É suposto levarmos tudo o que se passa a sério e acreditarmos que o enredo absurdo e as situações extremamente improváveis e irrealistas sejam não apenas plausíveis, mas comuns.
É suposto torcermos pela protagonista e admirarmos a sua tenacidade (inexistente) em seguir os seus sonhos. Mas nada disso acontece porque Emily recebe tudo de bandeja e não há nenhum clímax, revelação ou conflito que nos mantenham investidos na série. Para além de previsível, é uma chick flick feita às três pancadas por pessoas que, sinceramente, pouco se esforçaram por a tornar apetecível.
Exemplos
Em primeiro lugar, o facto de toda a gente falar inglês perfeito em Paris? Mesmo depois de a chefe de Emily lhe dizer que não saber a língua é “um problema”? Inconcebível. Nenhum francês gosta de falar inglês e muito menos se esforçaria por o fazer quando confrontado com um estrangeiro. (Aliás, mais depressa mandariam o estrangeiro a um sítio…) No entanto, Emily tem a sorte de não precisar de saber uma palavra porque há sempre alguém que a desenrasque, ou que saiba a sua língua.
Depois, a forma como Emily recebeu a oportunidade para ir para Paris trabalhar? Implausível e, sinceramente, preguiçosa. Entre muitas, muitas outras situações que vou deixar ao teu critério descobrir.
Emily
Não houve qualquer preocupação em construir personagens com personalidades ou que captivassem o espectador de nenhum ângulo.
Emily é, possivelmente, das protagonistas mais insípidas que se pode encontrar de momento na Netflix, e nem o é de uma forma adorável ou com que nos possamos relacionar, pois ao longo dos episódios não sofre nenhum desenvolvimento ou crescimento de carácter. Não aprende rigorosamente nada com os seus erros (pois estes acabam por ser desculpados, levando a que não haja nenhuma consequência) e dificilmente nos convence enquanto profissional ou mesmo pessoal “real”.
Sinais da sua competência? Raros, e de meia-tigela. As suas ideias, de alguma forma, “funcionam” e “impressionam” neste bizarro mundo. E apesar de ser criticada e não a levarem a sério, Emily acaba sempre por sair por cima. Um pouco difícil de digerir…
O facto de praticamente ninguém no trabalho gostar dela é inovador e, ao mesmo tempo, inexplicável. É verdade que esta começa a esforçar-se (talvez, por vezes, demasiado) e, aos poucos, vão começando a aceitá-la. Mas porque haveriam de o fazer quando esta está sempre a tentar impingir os seus ideais e costumes sem qualquer respeito pela cultura onde se encontra? Emily chega ao final da série sem sequer saber falar francês…
Nem mesmo Lily Collins, sendo uma actriz extremamente versátil e capaz, para além de querida do público, conseguiu salvar a situação. É vê-la a lutar por tentar encontrar camadas numa personagem completamente unidimensional.
Restante elenco
As restantes personagens não são muito melhores, até porque para além de pouco memoráveis são quase indistinguíveis.
De um lado temos a “melhor amiga” que, do nada, faz amizade com Emily num parque – uma asiática com (pelo menos) alguns traços interessantes e uma backstory a explorar, mas cujos hobbies se limitam a servir de ombro amigo/guia turística e a falar mal da China… Dá-se algum desenvolvimento mais para o final, mas este parece ter sido encaixado na narrativa só porque sim.
Depois temos a outra “melhor amiga” que também, do nada, cria laços com a protagonista quando a vê ser maltratada por uma florista – a típica cool girl francesa com gosto por arte e uma atitude muito laissez-faire. Soa familiar? São as perfeitas sidekicks a quem, no entanto, falta substância a sério.
Por fim, tenho de falar dos pares amorosos. Sim, no plural, porque por alguma razão todos os homens com quem Emily interage a acham instantaneamente irresistível. (É a Lily Collins, eu percebo…)
O pior não é o facto de Emily se envolver com um personagem diferente a cada episódio – especialmente sendo a sua maioria casados ou comprometidos. É o facto de estas relações não adicionarem nada à história ou à própria vida da personagem. Simplesmente acontecem porque ela é uma americana solteira em Paris – solteira, isto é, no segundo episódio. Emily, na verdade, foi para Paris com namorado, mas a relação de ambos acaba assim que possível para dar espaço aos múltiplos romances que esta encontra. Aliás, a break-up e o seu impacto têm o mesmo tempo de antena que a tal florista rezingona…
Emily envolve-se com chefes, clientes, e até mesmo com o namorado da “melhor amiga” e o seu irmão menor. E em nenhum momento da série este comportamento é repreendido; simplesmente é explicado que os homens franceses são uns flirts e tudo o que está a acontecer é totalmente normal… Ela sabe que é errado, mas a tentação é demasiado forte.
Como é que a equipa por detrás de Emily em Paris achou que o público iria reagir de forma positiva a este tipo de escrita? É um mistério.
O bom
Devo dizer que os primeiros episódios realmente tinham algum charme e levaram-me a querer continuar. Mas a partir daí, parece que os criadores não souberam bem o rumo que queriam que a série tomasse, levando a que esta ficasse all over the place. Muitas cenas e detalhes que nunca mais foram mencionados, e muitas pontas soltas deixadas ao abandono.
Penso que Emily em Paris possa apelar a um público que prefira enredos simples e que os faça sentir bem depois de um dia difícil porque, novamente, a falta de conflito, a constante atitude de “tudo é possível” e a sensação de que estamos perante um autêntico conto de fadas são bastante atraentes.
Também é interessante vislumbrar o guarda-roupa algo irreverente e repleto de Chanel, os lugares mais icónicos de Paris que vale a pena conhecer e, claro, ficar a saber um pouco mais da cultura moderna francesa (apesar de aconselhar a levarem o guião com um grão de sal no que toca à autêntica vivência parisiense).
Mas mesmo neste campo, existem títulos tão melhores em que possamos investir o nosso tempo e que não são metade do desastre que esta é… Títulos que realmente nos criam compaixão, esperança e empatia, e entretêm de forma mais inteligente. Emily em Paris, infelizmente, não é um deles.
Emily em Paris já está disponível na Netflix.