Desde miúdo que adoro ir ao cinema. Creio que é uma experiência bastante difícil de replicar em qualquer outra plataforma, e, quanto mais o tempo passa, mais seletivo sou com os filmes que decido reservar para a grande sala. Isto deve-se, em parte, à minha reação depois de sair da sala que estava a exibir O Senhor dos Anéis: O Regresso do Rei, onde nada sentia a não ser a sensação de grandeza, de que realmente tinha visto algo épico. Claro que inúmeros filmes de qualidade foram, vieram e continuarão a vir, mas muito poucos realmente avivam e nos transportam para o seu mundo, elevando o padrão de tal forma que nos fazem sentir quase gratos pela experiência que acabámos de ter.

Quando anunciaram God of War em 2016 tive receio no caminho em que colocaram Kratos, não só por reformularem a essência do jogo, mas também por se aventurarem por uma mitologia que ao mesmo tempo tem mais interpretações e complexidade do que a grega. Se acompanham as minhas análises com certeza já sabem que sou fanático por História e mitologias, e assim que soube deste novo cenário, puxei os livros das prateleiras e fiz o meu trabalho de casa.

Ora eu, ingénuo, depois de ter jogado, acabado e “platinado” a excelência do primeiro, achei que na sequela fossem enveredar pelo trilho mais seguro para a conclusão da história, mas, novamente, e à medida do jovem Bruno que tinha acabado de ver O Regresso do Rei, levei uma chicotada paradoxal de grandeza e humildade.

Narrativa

A viagem de Kratos marca-se pelo rasto de sangue que o assombra ainda hoje. O deus da guerra grego tudo e todos perseguiu para cumprir o que o destino tanto profetizou: a morte do seu pai, Zeus. Esta carnificina acumulou peso aos ombros do espartano que nada conheceu na vida a não ser dor e sede de vingança, tendo chegado a Midgard com a promessa de ser melhor.

Talvez façanha do destino, mas em terrenos nórdicos foi novamente perseguido, embarcando numa odisseia que honrasse a sua esposa, e ao mesmo tempo protegesse o filho, custasse o que custasse. Quando terminamos God of War (2018), descobrimos que Faye, esposa de Kratos e mãe de Atreus era na verdade Laufey, uma gigante. Isto leva Atreus a descobrir que também tem um nome de gigante: Loki. Antes de deixarem o túmulo, Kratos revela um último painel, ilustrando a sua morte nos braços de Atreus.

Resta-nos então o mais difícil: fugir ao destino.

Desde cedo nos deparamos com a reação às ações que perpetuámos. Freya enfurecida pela morte de Baldur garante perseguir-nos até aos confins do inferno, Thor, humilhado, procura um pagamento em sangue pela morte dos seus 2 filhos e claro, Odin, apercebendo-se dos feitos e das capacidades de Atreus, tenta atrair o jovem gigante para Asgard, o reino dos Aesir.

Ao mesmo tempo que Kratos percebe o risco de partir para uma outra guerra, lembra-se da sua promessa em ser melhor, colocando a vida do filho à frente de qualquer conflito. O dilema surge quando ambos se apercebem que não podem ter um sem o outro, ou seja, Ragnarök vai acontecer e os deuses vão continuar a persegui-los. Surgem então duas perspetivas: num lado temos um pai preocupado, com noção das cicatrizes que a guerra traz, procurando uma saída discreta; no outro encontramos Atreus, com uma sede infindável de conhecimento, reconhecendo que apenas Ragnarök levará ao fim dos seus problemas e a melhor maneira de o fazer é encarar o inimigo nos olhos.

Enquanto a prequela focou o desenvolvimento da relação entre pai e filho, Ragnarök mete esta relação à prova, separando-os. Passamos uma parte da narrativa com Kratos, e outra com Atreus, existindo a ocasional sobreposição.

A separação é crucial para o desenvolvimento das personagens, demonstrando a incapacidade de Kratos se concentrar sem saber que o filho está seguro, e para Atreus, que sendo um jovem adolescente, comete erro após erro embora as suas intenções sejam sempre as melhores. Tanto Christopher Judge como Sunny Suljic brilham nas respetivas prestações, acrescentando um peso emocional incrível à viagem, pois esta encontra-se repleta de impasses que requerem sacrifícios necessários, mas custosos.

Mimir torna-se mais relevante não só para efeito cómico mas também para o desenvolvimento pessoal de Kratos, oferecendo conselhos ou até mesmo ao ser questionado pelo deus da guerra face às decisões que o mesmo tomou. Para além disto, ainda interliga acontecimentos passados aos futuros, explicando detalhes pequenos, mas que vão preenchendo a história.

O desenrolar desta narrativa épica agarra-nos pelos colarinhos com crescimento, luto, humor, reviravoltas e concretização. A fuga ao destino prova-se traiçoeira e chama por uma miríade de novas personagens com apresentações devidamente espaçadas, permitindo um ligeiro desenvolvimento inicial, que mais tarde encruzilha com os acontecimentos essenciais à narrativa. Ragnarök sobe um degrau na exposição mitológica tanto dos habitantes do reino, como das personalidades divinas.

Mundo

Entre batalharmos criaturas míticas e prepararmos o fim do mundo, temos bastante tempo para nos fortalecermos.

O mundo abre-se novamente à exploração da parelha, com mais reinos, puzzles, desafios, missões secundárias ou até NPCs que nos contam uma boa história. Os novos reinos encaixam na exploração da narrativa, pelo que não ficam todos disponíveis de imediato, sendo que alguns requerem que completemos missões para serem desbloqueados. Dado os acontecimentos do primeiro jogo terem-se sucedido há alguns anos, os cenários foram alterados e melhorados visualmente, mantendo alguma identidade na arquitetura mas ao mesmo tempo fazendo-nos sentir que não conhecemos o território.

Para além do número de missões secundárias aumentar em quantidade, aumenta também em qualidade. Cada missão diverge da anterior no foco, empurrando as famosas fetch quests para fora da fotografia. Existem na mesma missões de espíritos relativamente fáceis de resolver, no entanto, encontramos também histórias custosas que enfatizam a dureza das missões, não só em termos físicos como emocionais. Desde apanhar criaturas para proteger a Yggdrasil a descobrir o motivo de uma zona em específico ter tantos terramotos, quantidade e variedade não irão faltar na viagem.

A transversalidade entre reinos melhorou significativamente, não só através da existência de mais portais, mas também pela rapidez que acrescentaram à verticalidade, algo que possibilitou a colocação de edifícios mais altos, ao invés das vastas áreas quase unicamente horizontais que encontrámos no primeiro. Para além dos já existentes puzzles, encontramos agora portões trancados de acordo com a hora do dia, ou seja, existem novos altares que nos permitem escolher entre dia e noite, “cortando” o crescimento de algumas plantas e abrindo novos caminhos.

Durante a exploração podemos ouvir novos comentários tanto de Atreus como de Mimir, dizendo que já não há nada a recolher, ou, caso não tenhamos explorado tudo, insinuando que ainda existe algo por ver. Mesmo em missões principais, existe por exemplo um momento em que nos desviamos do caminho para abrir um baú, e uma das personagens diz que o caminho é para o lado oposto, mas Atreus explica que a última vez (no jogo anterior) que lá estiveram, existia um baú Nornir naquela mesma zona.

Para além destes toques “pessoais”, a Santa Monica acrescentou um novo que, a meu ver, triunfa sobre todos: o journal é agora preenchido por Kratos, dando-nos um olhar aprofundado à sua perspetiva sobre certo local, monstro, ou pessoa.

Combate

Terminámos God of War (2018) com o Leviathan e as Chaos Blades, e, como podem imaginar, com a escalada da tensão, são necessárias novas soluções. Felizmente começamos o jogo logo com o machado e as lâminas, oferecendo diversidade a partir do primeiro minuto, chegando posteriormente mais ferramentas e vestimentas com que podemos obliterar inimigos, juntamente com dezenas de novas habilidades a serem desbloqueadas em cada arma. Adicionalmente, podemos equipar amuletos que nos dão vantagens estratégicas em combate se conseguirmos 3 do mesmo reino.

Caso achem que as combinações atuais não funcionam da maneira que preferem, todos os botões são reconfiguráveis, permitindo uma experiência ao sabor do jogador.

O combate mantém-se graduado, mas ao mesmo tempo apresenta-se da forma como preferirem. Querem só carregar R1 e no fim R2? Podem potenciar isso com habilidades que aumentem o dano e/ou o estado elemental do inimigo. Esta é outra das camadas que chegou ao combate, mas não o complica: danos elementais. Podemos agora manter premido triângulo para congelar o machado, dando não só mais dano físico, como ainda existe a possibilidade de congelar inimigos. O mesmo se aplica às lâminas, só que em vez de os congelar, incineramos os inimigos. Estes estados, aliados à diversidade de armas logo no início, permitem manter frescura no combate, ao contrário do original onde durante boa parte da história só tínhamos mesmo o machado.

Um dos principais pontos críticos na prequela era a falta de diversidade nos inimigos. Felizmente a Santa Monica soube lidar com o feedback e trouxe inúmeras novidades para esquartejarmos. Sejam eles fodders ou mini-bosses, cada esquina e reino encontram-se populados com inimigos, mantendo algumas caras conhecidas, mas trazendo não só novas variantes dos mesmos, como adversários completamente novos que obrigam ao uso de todas as mecânicas que temos ao dispor.

Serão raras as alturas em que os inimigos aparecerão em menor número do que nós, o que significa que o encurralamento é uma possibilidade, e nas vezes em que me aconteceu, a câmara nem sempre colaborou. O que vale é que isto não durava mais do que 1 ou 2 segundos e provavelmente será corrigido num patch posterior.

Não precisam de temer caso achem que não apanharam tudo, pois quando vamos ter com Brok ou Sindri, estes têm um baú com recursos “esquecidos”, que ficaram no campo de batalha. Estes recursos são abundantes, tendo a equipa limitado apenas os que melhoram os últimos escalões do armamento. Creio que, derivado destas várias novidades, a UI no menu do equipamento fica por vezes sobrecarregado de informação, onde confesso que me perco um bocado.

A dificuldade do jogo não será problema para a maioria, existindo diversos modos, incluindo o famoso “Give me Story” que se foca apenas no desenvolvimento da narrativa, e desvaloriza o combate. Não obstante, os bosses e mini-bosses não são pêra doce, não faltarão desafios que vos colocarão as capacidades bélicas à prova. Falando em capacidades bélicas, por motivos relacionados com a narrativa já não existem as lutas com as valquírias, mas asseguro-vos que a sua substituição não trará menos dores de cabeça (no bom sentido).

Acessibilidade

Jogar os títulos da Sony tornou-me mimado no que toca à acessibilidade.

Fui assoberbado com “ajudas” à jogabilidade que nunca achei serem necessárias, mas a verdade é que são melhorias de vida e não me canso de as usar, nomeadamente assistências na navegação (não preciso de carregar X sempre que quero saltar ou trepar) e a opção de Kratos apanhar os itens todos sozinho, poupando centenas de cliques aos meus botões. São detalhes pequenos claro, mas que suavizam a experiência e prolongam não só a facilidade com que estamos colados ao ecrã, como também o tempo de vida dos periféricos.

Podemos escolher entre 4 predefinições de acessibilidade: visão, audição, motora, ou redução de movimento no ecrã. Cada uma possui um conjunto específico de alterações que melhora a experiência para os que necessitem, como por exemplo, na predefinição da visão estão ativas opções como texto com tamanho grande, ecrã com alto contraste, assistências à navegação e transversalidade, entre inúmeras outras.

Para além de predefinições, podemos ainda alterar cada vertente como melhor acharmos. Podem, por exemplo, apenas alterar o filtro de cores, incluindo regular a força do filtro, ou ativar o modo de alto contraste somente em NPCs. Existe uma multitude de ajudas que não devem ser ignoradas, e fico feliz que cada vez mais as equipas estejam a elevar o padrão nas definições para incluir o máximo de jogadores possíveis.

Audiovisual

Se em 2018 mal acreditava no que via na Playstation 4, dou o maior respeito à Santa Monica por, de alguma maneira, conseguir incluir God of War: Ragnarök numa consola com quase 10 anos. Felizmente tive a oportunidade de jogar na Playstation 5 e claro que existiram cedências, mas os traços minuciosos criam uma pintura surreal.

Mais do que o realismo, nota-se o esforço na variedade e qualidade dos cenários que nos são apresentados. Serão sempre bem-vindos retoques adicionais às texturas ou sombras mas denota-se que Ragnarök sobrepôs qualidade artística à fidelidade visual, e sinceramente, não me consigo queixar. Cada gruta está repleta de detalhes caracterizantes do reino em que nos encontramos, com saídas que nos colocam em frente a estruturas com dezenas de metros de altura, utilizando o ângulo da câmara estrategicamente para acrescentar verticalidade e cinematografia praticamente ímpares.

God of War: Ragnarök tem 4 modos de desempenho:

High Frame Rate (120hz):

  • Performance Mode – 4K dinâmico | 120 fps;
  • Resolution Mode – 4K dinâmico | 40fps;

Modo Padrão (60hz):

  • Favour Performance – 4K dinâmico | 60fps;
  • Favour Resolution – 4K nativo | 30fps;

Depois de 10 minutos no modo de Resolução para absorver a beleza de Ragnarök, atirei-me ao modo de Desempenho e nunca mais olhei para trás. Incrível como um jogo que ainda não saiu tem melhores visuais e corre melhor que muitos com meses/anos na indústria. A qualidade do desempenho adequa-se ao jogo no geral e não desilude. Na verdade, nenhum dos modos desilude, pois mesmo no modo de Resolução podem jogar a 30fps estáveis.

Fora das definições gerais, à semelhança de God of War podemos ainda personalizar a quantidade de Film Grain e Motion Blur ao nosso critério, juntamente com a possibilidade de configurarmos a quantidade de “abanão” que a câmara leva em momentos com mais ação.

Também no áudio conseguimos personalizar tanto o formato de output, tanto em termos de dispositivo como na utilização do áudio num só dispositivo, os sliders dos vários canais de volume ou dar enfâse apenas às vozes sem mexer nos sliders. Nas legendas temos várias opções, consoante a preferência pessoal. Podemos mudar o tamanho, a cor, incluir o nome do orador (com uma cor específica para o próprio), ou uma opção que desfoca uma caixa atrás do texto, mantendo o visual do cenário, apenas estando desfocado.

Não podia ser uma experiência épica sem o toque mágico de Bear McReary. Depois de ter colaborado com a Santa Monica na prequela, regressou com os seus violinos melancólicos e tambores imponentes. Cada momento vê a sua tensão subir de mão dada com a banda sonora, não desperdiçando uma oportunidade de acrescentar atmosfera.

Embora já tenha referido as prestações de Christopher Judge e Sunny Suljic, o resto do elenco presta a devida homenagem à saga. Desde a incrível prestação de Danielle Bisutti como Freya, Richard Schiff como Odin, Ryan Hurst (Opie for the win) de Mjölnir na mão ou Alaistar Duncan como o conselheiro hilariante Mimir. Faltam nomes mas não devem ser desvalorizados, todo o elenco entregou o máximo que conseguiu e culminou numa viagem emocionante, mas acima de tudo, digna.

Breviário

O Padrinho reinventou os filmes sobre a máfia, cimentando-se como um dos melhores filmes de sempre. No entanto, Francis Ford Coppola soube aproveitar tudo o que tornou o 1º filme excelente e decidiu aprofundar as personagens que já nos tinham cativado, criando o Padrinho 2, que é, na minha opinião, o melhor filme de sempre. Ragnarök segue as suas pisadas. Embora God of War tenha tido um impacto mais forte no lançamento, o âmago do seu sucessor consiste na exposição emocional das consequências, abrindo não só mais portas em Midgard, como também as janelas para a mente de Kratos e os seus aliados.

Não lancei a análise no dia em que o embargo acabou porque achei que o que tinha escrito não fazia justiça ao que senti enquanto joguei. Deixei a mesma a “maturar”, aproveitando para rever os jogos que joguei ao longo do ano e tentando perceber se os padrões seriam iguais mas a verdade é que não são. É difícil expressar a sensação de quem passa dezenas de jogos ao longo dos anos, já habituado a conhecer todas as mecânicas e feitios das personagens praticamente sem ter de pensar no que está no ecrã, e depois chega God of War: Ragnarök que, embora me dê o poder de controlar Kratos, mais importante do que isso, deu-me a oportunidade de presenciar esta odisseia épica.

CONCLUSÃO
Digno
10
god-of-war-ragnarok-analiseExistem várias maneiras de deixar marca num jogador, seja por uma personagem que nos cativa, um mundo de tirar o fôlego, ou uma história que nos agarra até sabermos o que acontece no fim. God of War: Ragnarok foi paciente na chegada, mas cumpre em todas as vertentes que enunciei, deixando um machado no meio da arena para os que o tentem desafiar.