Numa altura em que recuperamos o fôlego da versátil aventura que foi a nossa análise a Split Fiction (cheia de mundos e histórias onde diferentes tipos de imaginários reescrevem constantemente a experiência de jogo), chega-nos Karma: The Dark World, e lá voltamos a mergulhar num jogo que se desdobra em diversos níveis de camadas e jogabilidades. Parece um paralelo bizarro, mas a Pollard Studio só retira mesmo da receita a componente co-op que a Hazelight Studios tão bem explora, e entrega-nos profundidade, profundidade e profundidade até ficares sem oxigénio.
Agora que estamos a fechar a carteira para nos prepararmos para os futuros lançamentos da Nintendo Switch 2, e das bombas que andam sempre nas trends internacionais, é muito fácil para um jogo tão pequeno diluir-se no meio de tanto frenesim. Contudo, tanto pela sua igual elasticidade narrativa, como pelo enredo de peso, que no caso de Split Fiction estava um pouco em falta, Karma: The Dark World é uma experiência verdadeiramente arrebatadora. Foi com enorme surpresa que descobri que, para lá do agoniante terror psicológico, Karma traz-nos temas sensíveis, explorados a fundo com coração, corpo e alma, o que é louvável dada a sua brevidade.
Com uma duração de sensivelmente 6 horas, no mínimo, não irei mesmo partilhar muitos detalhes sobre a sua história para explorares a tua conta e risco. Posso, no entanto, dizer-te que, do início ao fim, estás constantemente a tentar processar o teu papel, e a tua identidade, numa sociedade distópica construída a régua e esquadro em homenagem a 1984 de George Orwell. É, portanto, como se tivesses uma bomba nuclear permanentemente a lavrar as paredes do teu crânio.

Não querendo trazer políticas para aqui, e não sabendo se é, de facto, propositado, quero só acrescentar a nota de que senti um reflexo pitoresco da atualidade em que vivemos atualmente que me deixa um pouco agoniada. Em plena “guerra comercial”, Karma: The Dark World dá-nos um abanão para o caminho que estamos a remar como sociedade, e para a repetição das experiências que a humanidade já enfrentou no passado. Aqui o Poder transmitiu-me traços das potências e soberanias dos EUA, USSR e da Alemanha numa só representação de uma sociedade tecnologicamente “evoluída” mas igualmente distorcida e escrava do controlo tecnológico como a da atualidade.
Os calafrios vão tão longe que há uma cena muito específica onde, a jogar, revi o meu dia-a-dia (e o de outros colegas funcionários públicos), que me deixou particularmente com um friozinho no estômago… Nesta trabalhamos para objetivos a um ritmo inumano, mecanizado e supervisionado, onde ao mínimo deslize do jogador/funcionário na falta de foco (e na ausência de antidepressivos/ansiolíticos) somos obrigados a consumir uma substância azul regenerativa que “reanima” o nosso corpo cansado para não pararmos a produção. Este xarope medicinal vai, também, muito além das bebidas energéticas, e confesso o meu receio de um dia ser suplementar no trabalho convivermos com estas drogas que bloqueiam os receptores de cansaço até não teres mais sangue para bombear e, simplesmente, te apagares do mundo.
Como o jogo prima pelos detalhes no seu discurso, pagava bem para ver a discussão que este mundo obscuro iria gerar ao ser adaptado para uma série e ter um público mais abrangente, já que a recepção de Severance foi o que foi.

No campo da jogabilidade em si, tal como Split Fiction, prepara-te para supresas atrás de surpresas. A lógica e as mecânicas mudam, e nem mesmo a cronologia da narrativa segue uma reta linear. Os puzzles vão requerer que reimagines novas formas de interagires com o que já tinhas pré-estabelecido, numa curva de aprendizagem, portanto, vertiginosa. Joga sem orientação, deduzindo tudo o que tens de fazer apenas com o recurso da tua fantástica e maleável massa cinzenta. Claro está que, o facto de o jogo estar todo completamente traduzido para português de Portugal, acaba por nos ajudar a sermos mais espontâneos e intuitivos.
A vertente de terror psicológico manteve-me os pêlos do pescoço eriçados a todo o momento. Até o detalhe das portas se abrirem ao contrário quando estamos na expectativa de saber o que estará do outro lado mexe com a nossa cabeça. Talvez te lembres de jogos como Layers of Fear, onde a cada porta que atravessas parece que entras num novo espaço. Aqui a experiência é um pouco semelhante, sendo que as portas podem mandar-te para ambientes completamente diferentes, o que para Split Fiction seria excitante mas, aqui, com o perigo sempre à espreita, deixa-te a caminhar com pezinhos de lã. Para os masoquistas até pode ser um ponto ainda mais excitante, mas acredita que quando não sabes o que está do lado de lá, teres de puxar a porta para ti, desviar-te do caminho e, finalmente, percecionar o outro lado, mexe com os nossos pirulitos!

À parte disso e dos monstros que nos perseguem, houve um jump scare mais inusitado que não estava de todo planeado, mas que tinha de partilhar contigo derivado de pontuais bugs que poderás encontrar. Sabes, é que do nada dei pela câmara a atravessar a cabeça do personagem como se estivesse a jogar Assassin’s Creed, só que o problema é que, para além deste não ser um jogo da Ubisoft, jogamos sempre em primeira pessoa. Então, o meu coração não ia aguentando quando vejo os malditos olhos e a língua do boneco através da cabeça. Mas se foi bug ou se podemos olhar para isto como um feature, deixo a teu critério, caro leitor.
Sendo jogado em primeira pessoa, há um esforço notável em trazer algum realismo através das texturas. Com ambientes que primam pelos jogos de luz e sombras, e onde o vermelho predomina para nos manter os nossos instintos primordiais sempre alertas nos cenários mais impactantes. A cereja no topo do bolo para esta experiência visual seria mesmo que desse para jogar em VR para uma imersão ainda mais incrível!
Um agradecimento especial à editora pela cedência de uma cópia para análise na plataforma PlayStation 5.
Karma: The Dark World já está disponível para PlayStation 5, Xbox Series X|S, e na Steam para PC.