França e os seus personagens-tipo gentleman thieves (ladrões cavalheirescos) estão de regresso às tendências. George Kay (Criminal: UK, Killing Eve) ressuscita uma velha trama de personagens que sempre tiveram sucesso garantido dentro dos seus meios, quer na literatura, no pequeno ecrã, no anime ou até nos videojogos. Mas será que Lupin, da Netflix, tem o mesmo carisma e genuinidade que conferiram a todas as obras anteriores, motivos para o espectador ficar colado ao ecrã? É isso que vamos descobrir.
Personagens como a de Assane Diop, personagem principal nesta série, não são, de facto, novidade neste mundo da ficção francesa. Este é inspirado em Arsène Lupin, outra personagem fictícia e central nesta série, que foi nos apresentada em 1905 pela mão do escritor Maurice LeBlanc, e que, por sua vez, se inspirou em Rocambole de Pierre Alexis Ponson du Terrail publicado em 1857. Se formos a ver, todas estas personagens-tipo tem imensas coisas em comum: matreiros nos seus apetites, mas cavalheirescos nos seus gestos, todos operam à margem da lei, roubando apenas dos mais abastados. Mas atenção que não devemos confundi-los com um Robin Wood, por exemplo, pois os seus esquemas são apenas para proveito próprio. Em grande maioria, estes recebem este ofício como sendo “o negócio da família”, casos onde podemos constatar exemplos da trama de Sly Cooper (videojogo) e Lupin the Third (anime).
Contudo, Assane Diop não segue as pisadas destas personagens, surgindo sim como alguém profundamente real, que se inspirou na obra de Maurice LeBlanc e quis viver a vida da sua personagem. Como resultado, vemos um “Lupin” igualmente astuto, cavalheiresco, e muito perspicaz a planear cada passo da sua atuação, mas no entanto, com algumas falhas de raciocínio, e onde falta aquela genuinidade muito própria de todas as outras personagens ficcionais já acima mencionadas. É talvez uma abordagem mais realista a esta personagem-tipo, mas fico em boa verdade a desejar por uma segunda temporada onde possamos ver esta personagem desprender-se um pouco mais das suas raízes reais, e deslumbrar-nos com a sua “arte”, com todos os truques e peripécias de um verdadeiro master thieve.
Assane Diop, ao contrário das outras personagens, tem também um curto propósito, uma história de origem, que me parece dar um certo princípio e fim a esta sua faceta. Diop torna-se um gentleman thieve, não por natureza, não por ser educado nesse sentido, mas por ter uma profunda sede de vingança. Algo que nunca foi motivação para estas personagens. O seu pai, um homem humilde e com um trabalho modesto de faz-tudo para a abastada família Pellegrini, foi alvo de uma cilada que o colocou atrás das grades. Vendo o seu pai ser declarado culpado por um crime que não cometeu, Assane procura chegar à verdade e expor a família Pellegrini pelo falso roubo de um colar que já foi tesouro nacional. No entanto, desde cedo que não me conformo com isto, pois Assane caminha precisamente para o mesmo caminho que os Pellegrini desenharam para o seu pai. Só que enquanto este último procurou viver sempre uma vida honesta e passar esses valores ao seu filho, Assane desvia-se e faz o percurso oposto, nomeadamente com o seu próprio filho Raoul.
Em matéria de família, e de romance (sendo este uma característica intrincada das obras semelhantes) sinto também aqui uma extrema falta de conteúdo. Assane e a mãe do seu filho, mantém uma boa relação de amizade após a sua separação, mas, no entanto este é algo ausente na vida de Raoul. Ora desta feita, temos perante nós uma família moderna e real, mas não temos muito mais substância a que nos agarrarmos nesta estória. Assane tem o seu plano de vingança, okay, vemo-lo actuar sobre esse, okay, usa esquemas criativos para estar sempre alguns passos à frente das autoridades, okay, mas é só isto. Não há muito mais que nos agarre ao seu dia-a-dia. Não há muito mais que nos agarre à sua pessoa.
Assane só tem uma motivação, e só o vemos a desempenhar os seus esquemas. Não consigo deixar de ir buscar o exemplo do filme Now You See Me (Mestres da Ilusão), onde também a trama consistia sobre tudo de grandes golpes, mas desde a preparação à execução e à revelação dos truques, tudo era verdadeiramente interessante de se ver. Já aqui sentimos a necessidade de existência de um elemento que funcione melhor como antagonista e esteja algo mais activo neste enredo. Temos uma equipa policial frustrada com estes estranhos casos, e um dos seus elementos é capaz de encaixar as peças todas, mas é constantemente visto como um idiota a quem ninguém dá ouvidos, o que atrasa severamente o ritmo de desenvolvimento do enredo.
Com tantos elementos que sinto em falta para nos agarrar verdadeiramente, resta dizer que nesta série, e apesar do personagem principal parecer muito astuto, este está, simplesmente, a seguir o guião já traçado pela personagem fictícia Arsène Lupin, e reproduzindo exactamente as situações e artimanhas existentes na obra de Maurice LaBlanc. No entanto, este é um factor que me parece prestes a mudar, dado o final desta primeira temporada. Talvez agora, Assane tenha de se voltar mais para o improviso e ser mais meticuloso, especialmente agora que as autoridades já conhecem a sua verdadeira identidade. Nessa hipótese, seria uma óptima oportunidade para melhorar as engrenagens com que contam o desenvolvimento dos seus planos.
A nível da actuação, temos a saudar a prestação de Vincent Garanger como Gabriel Dumont, chefe do departamento de investigação que tem em mãos a investigação sobre “Lupin”. Esta é uma personagem que, apesar de corrupta, pode facilmente virar o jogo, e desde cedo esteve ligado ao caso de Babakar Diop. Este último também foi uma presença agradável credível no pequeno ecrã, interpretado por Fargass Assandé. Não descuremos, no entanto, a carismática prestação de Omar Sy, onde vemos talento para mais e melhor, havendo espaço para melhoramentos da abordagem escrita da personagem.
De facto, há imenso a melhor na estrutura desta série, para esta libertar todo o seu potencial. As suas raízes que a prendem a um mundo mais real são uma abordagem totalmente válida, mas não perdoam a falta de elementos que alimentem o entretenimento do público. Lupin já nos capta o interesse, mas falta qualquer coisa que nos deixe verdadeiramente colados ao ecrã.
Lupin já está disponível na Netflix.