A verdade é que não há quem não goste de uma história bem escrita e bem contada, uma história recheada de personagens inesquecíveis, dilemas e acontecimentos inesperados. Todos gostamos, e tenho mesmo de me incluir, de histórias com a capacidade de nos mergulhar na experiência de cada personagem, protagonista ou não, tanto no cinema e na televisão como na literatura e, inevitavelmente, nos videojogos. Felizmente para todos os que gostam em simultâneo de boas histórias e de bons videojogos, as características que o formato oferece permitem uma abordagem especialmente envolvente e muito mais imersiva do que os restantes, abrindo portas a novas ideias e novas abordagens. E é sobre uma dessas abordagens que escrevo neste artigo: as narrativas interativas.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que, na maioria dos videojogos, pelo menos no que encontro no meu top of mind, a história é-nos geralmente apresentada e orientada através de pequenos momentos cinematográficos, de cutscenes ou, em alternativa, com recurso a diálogos mais extensos, que nos levam a parar para os acompanhar e para reter informação, correndo o risco de cair (ou caindo mesmo) no desinteresse. Ainda assim, apesar de estas ferramentas garantirem que a mensagem é transmitida com sucesso, de entre todas, a forma que considero mais original, disruptiva e eficaz na aproximação do jogador à história é a utilizada nas narrativas interativas, a que torna o jogador no próprio autor e condutor da história, no decisor que dá forma aos acontecimentos que compõem o enredo.
A primeira pessoa assume um grande destaque em diversos videojogos, incluindo de géneros e segmentos variados. Jogar na pele de A, B ou C e ser conduzindo pela história da respetiva personagem assenta numa receita antiga e segura que, com os ingredientes certos, como colecionáveis e missões secundárias, continua a dar resultado. No entanto, existe uma outra dimensão, a das narrativas interativas, talvez mais complexa em termos de contexto, racional e emocional, que passa por jogar na pele e no espírito de A, B ou C e, em simultâneo, do próprio jogador. É um género que avança sem a previsível rede de segurança proporcionada por um resultado ou desfecho pré-estabelecido. Nestes casos, cabe ao jogador guiar o desenrolar da história, tornando-se, para além de consumidor do conteúdo, no próprio criador, com base numa abordagem que oferece uma experiência muito mais interessante do ponto de vista da imersão.
Sim, reconheço que às vezes pode apetecer-nos algo mais simples, sem complexidade ou esforço mental. Nem sempre nos apetece mergulhar em The Last of Us e, pelo contrário, procuramos uma partida rápida de Rocket League. Ou então não nos vemos a regressar a um The Legend of Zelda, mas sim a desfrutar de uma ou duas horas de Pokémon Unite. E é igualmente bom. A consideração deste artigo prende-se com uma nova forma de contar histórias tão boas que merecem ser contadas, de oferecer conteúdo de valor aos jogadores e de os envolver num bom enredo e na vivência de personagens trabalhadas com alguma profundidade. E, entre as tantas palavras que escrevi, a questão central é: será preciso ou vantajoso ir além das comuns cutscenes e dos diálogos, que tantas vezes acabamos por saltar ou ignorar?
A história é o foco
Sou um grande defensor de narrativas interativas, apesar de as ver pouco valorizadas, sobretudo numa sociedade cada vez menos adepta da profundidade e cada vez mais assente no que é simples e imediato. Vivemos no tempo do scroll infinito, dos vídeos de poucos segundos e das partidas rápidas e repetitivas. Ler um livro de 200 páginas ou mergulhar num videojogo que obriga a manter a atenção tem-se tornado cada vez menos interessante. Como li há tempos, o género de estratégia está em queda e o mercado começa a sofrer com os efeitos da superficialidade a que tem habituado os consumidores.
Felizmente, há quem resista a esta tendência e continue capaz de equilibrar a adrenalina das partidas rápidas com a profundidade de histórias que requerem tempo e concentração. Felizmente também, as narrativas interativas tendem a recompensar os mais pacientes, os que arriscam embarcar numa viagem que se adivinha longa. Para além de oferecerem uma história (geralmente) incrível e rica em mistério e emoção, as narrativas interativas dão, como referi, aos jogadores o poder de a ajudar a compor, através de passos e decisões que a vão estruturando.
Ao escrever sobre narrativas interativas, nos quais o jogador é tanto consumidor da história como, até um determinado patamar, à boleia da componente interativa, criador dessa mesma história que vai consumindo, escrevo sobre videojogos que têm naturalmente um tronco central, do qual nascem ramos que oferecem a possibilidade de seguir percursos alternativos. Isto é, dentro de uma via central, o jogador tem o papel de optar por vias secundárias que o conduzem a um respetivo destino.
Dentro das narrativas interativas, a história é praticamente tudo. Os gráficos caem para segundo plano, a banda sonora alimenta a componente emocional da obra e não encontramos com frequência a habitual ação assente no trabalho de equipa, em tiros certeiros, em corridas carregadas de adrenalina ou na destreza de movimentos ágeis para escapar aos golpes dos adversários. Na prática, tudo gira em torno de um protagonista que se movimenta livremente por um cenário, interagindo com outras personagens, objetos e elementos, geralmente em busca de “porquês”, de respostas e de informações que contribuam para o desenrolar da história. Para além de levarem o jogador a assumir a coordenação motora do protagonista, as narrativas interativas levam-nos a assumir a componente emocional e racional da personagem principal, num esforço mental diferente, que resulta num maior envolvimento na história. Nas narrativas interativas, a questão passa rapidamente de um simples “O que farias?” para um mais sério “O que vais fazer?”. E é aqui que tudo ganha peso.
O “eu jogador” e o “eu personagem”
Um dos aspetos mais fascinantes das narrativas interativas passa pelo confronto entre as noções de certo e errado, entre o que é moralmente aceite e o que pode ser considerado imoral. Ao completar vários títulos do género, pude assistir, em diferentes ocasiões, a um claro embate entre o “eu jogador” e o “eu personagem”, causado pelo choque de valores face a uma determinada decisão. Se, por um lado, o “eu jogador” nunca faria algo, cabe ao “eu personagem” não o fazer. Por outro lado, o “eu personagem” está numa situação em que o “eu jogador” nunca esteve e precisa de fazer algo que o “eu jogador” nunca faria. Ainda que desconfortável, esta dualidade é o combustível que mantém as narrativas interativas vivas e de boa saúde, tornando-as desafiantes e altamente viciantes. Na verdade, uma experiência deste género nunca resultaria com banalidades e assuntos ou decisões pouco sensíveis, porque é precisamente no desconforto que está a essência de muitos destes clássicos.
À medida que todas estas decisões se vão amontoando e dando forma a um percurso que, não tão poucas vezes, acaba por parecer desconexo, a história vai fazendo o seu caminho. Cada escolha, mais ou menos complexa, contribui para um desfecho que, mesmo não sendo o ideal, acaba por refletir o somatório e as consequências das opções tomadas ao longo do trajeto. Por várias horas de jogo, vamos sendo “engolidos” pela história, ao mesmo tempo que lhe damos força e motivos para nos fragilizar e manter colados ao ecrã. É estranho e quase poético, mas ao mesmo tempo fascinante.
É neste género e nesta fase da viagem que o popular Storytelling passa a Storywriting. É aqui que o frequente “eu jogador” passa ao menos habitual “eu personagem” e este “eu personagem” passa ao ainda menos comum “eu autor” da história. A responsabilidade que cada escolha carrega torna-se muito mais pesada quanto maior o envolvimento e o avançar da história. Como escrevi antes, é uma sensação desconfortável, mas é o que torna as narrativas interativas ainda mais impactantes.
A vida (ainda) é estranha em Detroit?
Percebo que possam continuar confusos com tanta descrição, por isso aqui estão alguns exemplos, mais ou menos populares, que possivelmente conhecem e que se encaixam nesta descrição: Heavy Rain, Life is Strange, Life is Strange 2, Detroit: Become Human, Beyond: Two Souls, Twin Mirror, Life is Strange: Before the Storm e o recente Life is Strange: True Colors. Uma lista que se estende a muitos outros e que concentra alguns dos melhores videojogos que já joguei, com especial destaque para Life is Strange, que deu o pontapé de saída para um universo incrível, onde a realidade se combina com a fantasia, e para Detroit: Become Human, altamente completo e com uma experiência extensa, baseada em três personagens com perspetivas distintas sobre um mesmo e relevante tema. Duas sugestões indispensáveis, que todos os jogadores deviam experimentar e completar pelo menos uma vez na vida… até porque, como é comum nas narrativas interativas, a segunda volta já não tem (tanta) piada.
Life is Strange (2014) é um dos mais claros e populares exemplos de narrativas interativas, onde a história ocupa praticamente toda a mecânica do jogo. Aliás, é praticamente impossível elencar narrativas interativas sem passar por Life is Strange, que considero indispensável dentro do género. Depois do sucesso inicial, o universo de Life is Strange continuou em expansão, dando aos fãs uma série de títulos que, na minha opinião, teve o auge em Life is Strange 2. Se não sabem o que jogar a seguir, aqui fica uma excelente sugestão!
Por outro lado, Detroit: Become Human (2018) oferece uma abordagem mais complexa, mais elaborada e polida, que contrasta com o espírito indie de Life is Strange. Os gráficos são mais definidos, a atuação de voz recebeu maior atenção, incluindo na dobragem para português, com os talentosos Diogo Morgado, Vitória Guerra e José Mata, e a sofisticação do enredo é superior, abordando a fundo a conceção da inteligência artificial e dos andróides enquanto seres sencientes e conscientes, cada vez mais próximos do ser humano. Uma escrita futurista, que explora bem o racional e o emotivo, apresentando uma questão complexa nas vertentes ética, tecnológica, social e económica.
Novos caminhos publicitários
Se os videojogos são um formato com maior potencial para o envolvimento dos jogadores, as narrativas interativas podem desempenhar um papel de catalisador a nível dessa proximidade, contribuindo para uma imersão ainda maior. Esta componente, própria do género, pode representar uma nova oportunidade promocional para estúdios e marcas, na medida em que permite, através de Brand Placement e Product Placement, incluir discretamente marcas e produtos num contexto altamente imersivo, no qual o nível de atenção por parte do jogador está reforçado. Este panorama contrasta com os exemplos de Product Placement e Brand Placement a que habitualmente assistimos em videojogos e que se prendem bastante com o género de desporto e com equipamentos, elementos decorativos e painéis, outdoors e cartazes do cenário. De qualquer forma, pode ser que volte a escrever sobre este assunto, com alguma profundidade, numa outra ocasião!
Independentemente de tudo o que possa debitar, e já escrevi bastante, abordar a questão das narrativas interativas cumpre todos os requisitos para a dispersão e para a confusão, dado o sem-fim de pontos que podem ser trazidos para o artigo. O que quero realmente deixar no ar é: Dado o potencial que tem e o fascínio que gera, poderá este ser um género em ascensão, superando a repetição da habitual “receita” dos RPG? Ou será um género condenado, tendo em conta a crescente habituação ao superficial e ao imediato? Uma (ou duas) questão complexa, cuja resposta não reside numa simples escolha com consequências a curto prazo. É um dilema que pode demorar anos a ter resposta, mas que a terá certamente em breve. Resta esperar para ver. Até lá, vamos jogando.