Os zombies pertencem ao nosso fundo cultural há décadas. Toda a gente sabe o que são zombies, toda a gente viu filmes ou séries de zombies, e se o The Walking Dead me ensinou alguma coisa, é que os zombies são poderosos o suficiente para transportar a má escrita durante várias temporadas, até que o público se comece a desinteressar.
Mas de onde é que vêm os zombies? E porque é que se tornaram assim tão prevalentes? E como é que mudaram ao longo do tempo? E mais importante que isso tudo, o que é que os zombies nos andam a tentar dizer há tanto tempo?
Os Zombies Criticam a Escravatura – White Zombie (1932)
O mito do Zombie tem origem na cultura e religião da África Ocidental. A palavra “ndzumbi” significa cadáver no idioma Mitsogo, falado no Gabão, e “nzambi” significa o espírito de um morto no idioma Quicongo, falado em Angola e no Congo.
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No início do Séc.16, várias potências Europeias, primeiro Portugal, e depois Inglaterra e França, começaram a raptar, comprar e transportar vastos números de africanos no comércio de escravos transatlântico, com Angola a ser o principal porto de escravos no Séc.18.
Estas populações nativas à África Ocidental foram levadas à força para as Índias Ocidentais, Caraíbas, e Brasil, onde eram obrigados a trabalhar como escravos nas plantações de cana de açúcar, e levaram com elas a sua cultura, religião e tradições.
Nas colónias francesas, a lei obrigava a que os escravos fossem convertidos ao cristianismo, o que levou à emergência de religiões e crenças que misturavam elementos de várias tradições, dando origem ao Obeah na Jamaica, à Santeria em Cuba, e ao Voodoo no Haiti.
Uma dessas crenças originais era que quando um escravo morria o seu espírito era transportado de volta para África, para um paraíso terrestre chamado Lan Guiné. O suicídio era uma das poucas maneiras que um escravo tinha de ter controlo sobre o seu próprio destino.
Mas havia a ameaça que um Bokor, um feiticeiro, fosse capaz, através de magia, poções ou hipnotismo, induzir a morte, ou capturar a alma do morto, e depois reanimá-lo como escravo pessoal. Isso impedia assim que o seu espírito regressasse a África, logo ser transformado num zombie era o pior pesadelo para um escravo.
Portanto, na sua origem, o mito do Zombie é uma metáfora para a escravidão; uma pessoa sem vontade própria, sem nome, presa numa morte viva de trabalho interminável, a mando de um mestre todo poderoso.
Em 1915, por vários motivos políticos, os Estados Unidos da América invadem e ocupam o Haiti, e ocupam o país durante quase 20 anos. Em 1928, um escritor chamado William Seabrook, um ocultista alcoólico, auto-proclamado “negrófilo”, visita o Haiti e escreve um livro chamado A Ilha Mágica, onde relata a sua experiência com os rituais nativos do Voodoo.
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Num capítulo intitulado Homens Mortos a Trabalhar os Campos De Cana, Seabrook descreve o Zombie “um cadáver humano sem alma, ainda morto, mas removido da sepultura por forças mágicas, com um semblante mecânico de vida”. Seabrook escreve acerca de zombies a trabalharem os campos à noite, e descreve que eles “se mexiam como autómatos (…) com olhos mortos, não cegos, mas fixo, desfocado, sem ver”; momentâneamente todos os mitos do voodoo e dos zombies parecem reais, até que ele admite que “não eram mais do que pobres humanos comuns, idiotas, obrigados a trabalhar os campos”
Não demorou muito, depois do sucesso de filmes de zombies como Dracula ou Frankenstein de 1931, que a indústria de Hollywood, desejosa por mais um monstro, pegasse no livro de Seabrook, e no seu fascínio por zombies.
É o livro de Seabrook, e esse capítulo em particular, que inspira o primeiro filme de zombies de sempre, White Zombie, realizado por Victor Halperin em 1932.
Passado no Haiti, o filme conta com Bela Lugosi a fazer de feiticeiro Voodoo que ajuda o dono de uma plantação a transformar a mulher que ama num zombie de maneira a que ela se case com ele. É importante notar que por esta altura zombies não comem, ou desejam carne humana.
O terror no filme não vem tanto dos zombies eles próprios, mas da ideia de que um casal branco seja controlado por magias negras; o subtexto racista é óbvio.
E apesar de o filme não ter tido tanto sucesso como Dracula ou Frankenstein, gerou todo um subgénero de cinema, todo ele regido pelas ideias determinadas por Seabrook: escravos sem alma controlados por um mestre. Até o filme Plague of the Zombies de 1966, da Hammer Films, apesar de mostrar zombies visualmente semelhantes aos que conhecemos hoje, ainda os mostra a serem controlados por um mestre feiticeiro, ligando-o fortemente às tradições Haitianas do Voodoo.
Os Zombies Criticam o Vietnam – Night of the Living Dead (1968)
Em 1968 o realizador George Romero revoluciona o género dos filmes de Zombies, com o seu filme Night of the Living Dead. É difícil subvalorizar o impacto que Romero teve, e todos os filmes, séries, jogos de zombies feitos nos últimos 50 anos devem a sua existência a este filme.
Romero mudou as regras do jogo com Night of the Living Dead.
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Ele deixa para trás os aspectos mágicos, e os motivos para a reanimação dos zombies são agora pseudo-científicos, sejam radiações cósmicas ou vírus. Romero também põe de lado a relação mestre-escravo, e os zombies não estão sob o controlo de ninguém, sendo apenas criaturas de puro instinto.
Outro aspecto fulcral é que os zombies agora procuram os vivos, sendo levados por uma fome insaciável a querer comer os humanos. Mexem-se de forma desordenada, lenta, capazes apenas dos comportamentos mais básicos; só podem ser mortos se lhes destruírem a cabeça; se um zombie morder ou arranhar um humano, esse humano vai morrer passado pouco tempo, e reanimar-se pouco depois como um morto sedento de carne humana.
Se estes zombies não parecem os zombies do mito voodoo, é porque não são. No filme Night of the Living Dead os mortos têm o nome “ghouls”, e são mais inspirados no livro I Am Legend de Richard Matheson. É incerto como é que estas criaturas de Romero acabaram por adaptar o nome Zombies, mas desde então sempre que alguém pensa em Zombies, o mais certo é estarem a pensar em Romero Zombies.
Mas o que é interessante é que o próprio George Romero diz que o filme foi desenhado para reflectir as tensões do tempo. E os anos ‘60 tiveram muita tensão.
Desde o Movimento dos Direitos Civis até à Guerra do Vietnam, a sociedade americana estava profundamente dividida, com um conflito geracional nunca visto, e uma crescente desconfiança do governo.
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A Guerra do Vietnam foi tão divisiva porque pela primeira vez houve muita muita cobertura televisiva dos horrores que se passavam do outro lado do mundo, e as pessoas em casa eram capazes de ver o que se passava.
Night of the Living Dead põe essa mesma carnificina, sangue e tripas, no meio da Pensilvânia, e usa o mesmo tipo de imagem a preto e branco, cheia de grão, que as pessoas relacionavam com as imagens vindas do Vietnam. Os monstros não eram alienígenas ou criaturas exóticas, eram as pessoas que lá viviam, éramos nós!
Face a esse conflito interno, a essa guerra doméstica que agora se materializa da maneira mais grotesca e crua possível, os protagonistas no filme não se conseguem unir e trabalhar juntos para sobreviver. Estão constantemente a discutir, a discordar, e um a um vão morrendo.
A única personagem que sobrevive aos Zombies é o Ben, um afro-americano competente, decisivo, racional, (uma representação invulgar para a altura), que no fim é morto pela polícia, que o confunde com um zombie; mais uma vez, o subtexto não é particularmente subtil.
Os Zombies Criticam o Consumismo – Dawn of the Dead (1978)
É com Dawn of the Dead que Romero realmente explora o simbolismo destes monstros.
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Quando o filme começa os Estados Unidos estão a ser devastados há 3 semanas por cadáveres reanimados que comem pessoas, e a ordem social está a colapsar. Enquanto que os centros urbanos estão a transbordar de zombies, a Guarda Nacional está a conseguir controlar o avanço dos zombies nas comunidades rurais.
No início do filme há uma cena muito marcante, quando a Guarda Nacional ataca um bairro social e mata quase indiscriminadamente zombies e pessoas de minorias étnicas. É feita uma equivalência entre exterminar zombies, e exterminar pessoas pobres, desfavorecidas, latinas e de raça negra.
Os sobreviventes são membros da autoridade e jornalistas, que conseguem usar um helicóptero para voar por cima das massas de pobres zombies, e encontram refúgio num centro comercial. Quando lá chegam o seu primeiro instinto não é sobreviver, é ir às compras. Sem limites, sem restrições ao seu consumismo, os sobreviventes aproveitam-se de todos os luxos e riquezas a que não tinham acesso: os casacos de peles, as melhores comidas, relógios caros, etc, etc. São representados como personagens egoístas,
Os zombies, mais tarde no filme, acabam por invadir o centro comercial. À medida que os zombies se arrastam pelos corredores do centro comercial são um reflexo grotesco do nosso próprio comportamento. A inconsciência dos zombies é um espelho da nossa.
Uma das personagens do filme sugere que os zombies ainda têm alguma memória das suas vidas passadas, e são atraídos pelas suas pulsões humanas. O que o filme nos diz, é que as principais pulsões destes monstros continuam a ser fazer compras e consumir, tal e qual como nós.
Dawn of The Dead é basicamente “Eat The Rich” – O Filme.
Os Zombies Criticam o Bioterrorismo – 28 Days Later (2002)
28 Days Later, de Danny Boyle, não só conseguiu reanimar um género que estava quase morto (eh eh) durante os anos 90, mas por si só evoluiu o mito dos zombies de duas maneiras diferentes, mas igualmente importantes.
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Até essa altura a maior parte dos filmes usavam a radiação nuclear como justificação para o surgimento dos zombies (a Guerra Fria dominou a imaginação durante os anos 80 e inícios de 90).
Mas em 1986 é diagnosticada pela primeira vez, na Inglaterra, a Doença das Vacas Loucas, uma doença de priões, altamente contagiosa e letal, que se espalhou muito depressa pelo país, e que foi muito difícil de controlar. Entre 1986 e 2001 matou 180000 cabeças de gado só em Inglaterra. Pior que isso a Doença das Vacas Loucas tinham uma variante humana (Doença de Creutzfeldt-Jakob) que era igualmente letal, e que tirou o apetite para bife a imensa gente.
Ao mesmo tempo, em 2001, houveram vários casos mediáticos de cartas com Anthrax enviadas a vários canais de televisão e senadores, tendo morto 5 pessoas e infectado 17.
Danny Boyle, com 28 Days Later traz os zombies para o século 21 transformado-os numa metáfora para as epidemias virais e para o bioterrorismo. No filme o vírus é libertado quando um grupo de ambientalistas liberta animais de um laboratório que estão contaminados com uma estirpe particularmente agressiva e virulenta de Raiva. Os próprios sintomas da doença, com os Infectados a terem olhos injectados de sangue, são inspirados no vírus Ébola.
Isto também levou a uma das inovações mais controversas do filme, os Zombies Rápidos, que aqui servem como metáfora para a dificuldade em controlar uma epidemia viral e a velocidade com que esta se propaga, gerando discussões infindáveis sobre se estes são zombies genuínos ou não.
Os Zombies Criticam a Apatia Social – Shaun of The Dead (2004)
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Nos primeiros 20 minutos de Shaun of the Dead, realizado por Edgar Wright, somos apresentados a Shaun (Simon Pegg), um homem patético de 29 anos, que trabalha num emprego sem saída, onde ninguém o respeita, que não sai da sua rotina de jogar video jogos e ir ao mesmo pub todas as noites com o seu amigo de infância, e que é incapaz de fazer um compromisso com a sua namorada, que acaba com ele, queixando-se que ele devia viver a vida.
À semelhança de Shaun, as pessoas no seu trajecto para o trabalho são mostradas como estando igualmente isoladas, desinteressadas, e apáticas, com movimentos mecânicos e olhares vagos.
Shaun não tem objectivos, não tem direcção, é incapaz de avançar com a sua vida, e está tão apático, tão alienado da vida, que lhe passam completamente ao lado todos os indícios que alguma coisa muito errada se está a passar; mesmo depois do apocalipse zombie acontecer, Shaun continua a sua rotina matinal normal, não se apercebendo que os seus vizinhos são agora monstros sedentos de carne humana
Aqui os Zombies não são uma metáfora para a doença, ou para a pobreza ou para epidemias, mas sim uma metáfora para nós mesmos. Shaun of the Dead critica a sociedade e mercado de trabalho que enfia as pessoas em rotinas desumanizantes e lhes suga o espírito.
Num dos momentos mais marcantes do filme, em que as personagens têm de atravessar uma estrada cheia de zombies, a solução que elas encontram para passar despercebidas é simplesmente comportarem-se como zombies. Não é preciso cobrirem-se de tripas para disfarçar o seu cheiro, ou criar distracções, basta agirem e comportarem-se como zombies para que os zombies os reconheçam como um deles.
Os Zombies Criticam o Isolacionismo – World War Z (2013)
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World War Z é um filme inspirado na obra do mesmo nome do autor Max Brooks (filho do lendário Mel Brooks, para quem se importa com esse género de coisas). No filme o agente das Nações Unidas, Gerry Lane (Brad Pitt) viaja de país em país, numa corrida contra o tempo, para tentar parar a pandemia de zombies que está a destruir exércitos, destronar governos e a ameaçar a própria sobrevivência da espécie humana.
Max Brooks, com o seu livro, quis criticar a incompetência dos governos, o seu isolacionismo e incapacidade de colaboração, e apesar de estas ideias terem ficado algo diluídas, ainda é possível encontrar resquícios delas no filme.
Num paralelismo com a pandemia de SARS que se espalhou pelo mundo entre 2003 e 2004, o vírus Zombie que assola o mundo é identificado pela primeira vez na China. Em vez de alertar os outros países, a China tenta ocultar e abafar a crise, o que inevitavelmente falha e permite que a pandemia se alastre ainda mais depressa. No filme esta origem teve de ser alterada, senão o Governo Chinês teria impedido a distribuição do filme no país.
Vários países, Israel por exemplo tentam construir muros e paredes gigantes, para se isolarem da pandemia, em vez de colaborarem com outros países, e mais uma vez esses muros não são suficientes para impedir a propagação dos zombies.
Também num paralelismo com o Furacão Katrina que atingiu os EUA em 2005, sistematicamente os sistemas de governo, estruturas de defesa, e planos de contingência mostram ser completamente insuficientes e incapazes de lidar com a ameaça zombie.
O governo Americano está mais preocupado em esconder os factos das pessoas para evitar um pânico, do que propriamente resolver o problema dos zombies,
O filme ignora secções inteiras do livro acerca dos problemas éticos, consequências ambientais, e como os países se tentam reconstruir, mas não deixa de ser um exemplo de como Zombies podem ser usados para tornar óbvios os problemas dos sistemas em que confiamos.
Os Zombies Criticam o Aquecimento Global – The Dead Don’t Die (2019)
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Jim Jarmusch não é subtil com a sua mensagem em The Dead Don’t Die. No filme o surgimento dos zombies é atribuído à mudança do eixo magnético da Terra por causa de Fracking Polar, numa referência directa às mudanças climáticas associadas à sobre-exploração de combustíveis fósseis. Não é tanto uma metáfora como um cartaz com letras grandes a dizer AQUECIMENTO GLOBAL.
Não, o que é interessante em The Dead Don’t Die, são as reacções das personagens ao que se está a passar à sua volta. A maioria dos filmes de zombies têm de arranjar algum tipo de justificação para as pessoas não reconhecerem imediatamente que o que se está a passar é um apocalipse zombie. Ou nesses mundos simplesmente nunca houve filmes de zombies e as pessoas são apanhadas genuinamente de surpresa, ou estão em negação (no Shaun of the Dead, os protagonistas activamente evitam dizer a palavra “zombie”).
Em The Dead Don’t Die, no primeiro encontro com um corpo mutilado com dentadas, a personagem de Adam Drive imediatamente reconhece o problema como zombies. E não parece particularmente perturbado com isso.
A cada passo do filme, as surpresas e reviravoltas que esperamos de filmes de zombies são completamente subvertidas porque toda a gente percebe o que se está a passar, apesar de a personagem de Adam Driver estar constantemente a repetir que “isto vai acabar mal”.
E no entanto é raro ver personagens em pânico. Talvez porque as notícias estão constantemente a dizer às pessoas que o Fracking Polar é uma coisa boa e que a ameaça zombie não é assim tão grave quanto isso? Talvez porque acreditem genuinamente que é inevitável?
Seja por que motivo for, o problema dos zombies vai escalando e escalando, por vezes de maneiras que parecem obviamente evitáveis, e ainda assim ninguém faz nada. No fim, de uma maneira hilariantemente previsível, morrem todos.
The Dead Don’t Die usa os Zombies como metáfora para o Aquecimento Global para criticar as corporações e governos cúmplices em sobre-exporarem combustíveis fósseis quando é óbvio que isso não é boa ideia, os media por espalharem desinformação, e a nós mesmos pela nossa apatia e aceitação de o que parece ser um destino inevitável.
Nós, à semelhança da personagem de Adam Driver, também já lemos o guião do Aquecimento Global, e sabemos que isto vai acabar mal.