Por mais vezes que apague e rescreva esta introdução, frequentemente às tantas da manhã, o resultado é sempre o mesmo: um alvoroço emocional despoleta dentro de mim que tanto consegue canibalizar o meu espírito e paixão por uma das franquias mais bem sucedidas do mundo, assim como um arrebatante entusiasmo e sentimento de diversão em explorar os vários cantos ocos e expansivos; uma frase com tudo para ser contraditória, mas que no presente contexto faz imenso sentido. Deixo-te de rodeios e faço eco do considerado consenso geral: Pokémon Scarlet/Violet conseguem ser simultaneamente um dos melhores e piores jogos desta franquia dotada de um percurso ferino no mundo do entretenimento. Não posso, no entanto, em perfeita consciência deixar cair esta afirmação incendiária assim sem rei nem roque, comparável aos dejetos expelidos pelos pombos portugueses; é preciso fundamentar-te com a minha experiência. Sugiro que faças um chá imbuído em Energy Root para acompanhar a leitura que isto vai ser atribulado.
Quando terminei a análise a Pokémon Legends: Arceus em Fevereiro de 2022 sentia-me, veementemente, empolgado pelo o que a saga poderia trazer no futuro considerando que esta não era uma iteração à parte, mas sim um título principal no núcleo ordeiro até então estabelecido. Isto tornou-se ainda mais aparente, durante a minha aventura em Scarlet e Violet, com pelo menos três referências a Hisui. Dito isso estes novos videojogos são, na falta de melhor expressão, dois passos em frente e um atrás; um amontoado de ideias divertidas e algo coesas que revitalizam de forma definitiva a experiência tradicional, até então assombrada pelo pokémon do tipo Ghost tenebroso das sequelas seguras: a mesmice.
Nota do redator:
Se desejas ter uma experiência sem interferência alguma não leias mais. Contudo, em bom jeito crítico e consciente de uma boa ética, o presente texto estará isento de spoilers até ao máximo, desconversando sobre as mecânicas quando necessário, mas nunca questões relacionadas com os pontos mais fulcrais do enredo. Dito isso, para tua informação, as minhas sessenta horas de jogo cumpriram com todo o conteúdo de história disponível, assim como um pokédex completo e muitas tarefas secundárias: breeding, shiny hunting, hyper training, EV training, etc.
O desenrolar do enredo, escrito em larga parte com tons modestos, inocentes e inclusive melancólicos até à última hora da estória principal, identifica-se como uma dessas novas ideias que a Gamefreak engendrou para apimentar a caçada mais popular do mundo. Onde outrora o protagonista trilhava um caminho direto sem grande pompa e circunstância; um escarafunchar de uma lista de compras, em Pokémon Scarlet/Violet a nossa criança embarca numa aventura multifacetada face a um único ponto convergente. Desta vez a narrativa explora três caminhos diferentes, proporcionando ao jogador uma falsa ilusão de escolha que, curiosamente, funciona muito bem sob pretexto de exploração em mundo aberto.
Não obstante a suprarreferida ilusão a narrativa em Pokémon Scarlet/Violet efetua um bom trabalho em veicular o jogador pelos três caminhos, brindando-o com elementos pouco comuns, mas interessantes, numa iteração principal de Pokémon. Esta mudança, presente em parte pela recém concedida independência na jogabilidade, é igualmente bem vinda e inaugura boas novas para futuras gerações; recordo-me em especial, tanto do início como do final do videojogo, pensar que disfrutaria interagir com mais deste tipo de secções e momentos, íntimos e fechados, em oposição direta à liberdade regularmente concedida.

Sente-se em Pokémon Scarlet/Violet que a Gamefreak está, iteração atrás de iteração, a tentar desenvolver cada vez mais os fios narrativos que acompanham os seus títulos. Existe uma boa quantidade de pequenas estórias mescladas com a trama principal, como as motivações, dramas e desejos para o futuro de cada personagem (curiosamente todos têm uma enorme vontade de desabafar) ou as aulas da academia onde estudas que enriquecem o mundo à sua volta. São, contudo, esforços com tendência para cair no vazio dado que o restante mundo, aquele que o jogador explora fisicamente, está desprovido de vários elementos decorativos, sendo ele confrontando com planícies e planaltos primordiais, nunca as florestas densas ou caminhos montanhosos detalhados da nossa imaginação, algo que já não era verificado em Pokémon Legends: Arceus. Não ajuda também, em Pokémon Scarlet/Violet, as cinemáticas que acompanham acontecimentos marcantes serem destituídas de qualquer trabalho de voz. É difícil confessar-te que o presente título é imersivo, pelo menos narrativamente, quando vemos as personagens a mexer os lábios sem vocalização; fica a sensação que algo está em falta. Esta questão é ainda mais gritante quando uma das personagens, identificada como uma rapper, tem toda a sua personalidade limitada aos confins das caixas de texto.
É curioso discursar sobre imersão num videojogo deste gabarito com um público-alvo muito abrangente; uma dificuldade encontrada sempre pela Gamefreak em reconhecer o apelo que as suas audiências, estas sempre presentes nas suas algibeiras independentemente do estado do videojogo, verdadeiramente necessitam e isso confirma-se pela constante simplificação das suas mecânicas (shiny hunting ou breeding, por exemplo) numa tentativa de unificar e melhorar a experiência do utilizador. Felizmente consigo confirmar que estas atualizações QOL (quality of life) são quase todas para o melhor, com algumas omissões desapontantes.
A opção de Auto-Heal num pokémon na equipa é muito bem-vinda, mas a função não abrange status effects ou se o bichinho está fainted. O minimapa num dos cantos do ecrã diz os monstros que estão à tua volta, mas não só não consegues perceber onde estão exatamente, como este gira constantemente consoante a tua câmara, impossibilitando prender o mesmo através de uma opção. Aceder à Box com os pokémon, apesar de não ser algo novo, está prontamente disponível no menu, porém quando acedemos necessitamos de esperar entre 3 a 5 segundos para cada uma das caixas atualizarem completamente, e funções como mudar a alcunha de um dos bichos, ensinar e/ou mudar ataques e até a Judge (adquirida em post-game para ver os IVs) estão enterradas atrás de vários menus.
Não obstante as omissões aquando introdução de algumas QOL, existem outras que espero reencontrar em futuras iterações: a pequena animação após capturado um pokémon é compensatória, oferecendo um pequeno extra, uma paisagem, por cada registo no ‘dex. Dentro deste contexto, senti que a animação da pokébola está mais rápida, resultando em menos tempo perdido; apanhar os vários itens no chão sem parar também contribui para este mesmo efeito. Mas, para ser muito honesto, tendo em consideração o legado da franquia, uma das melhores adições apresenta-se durante a troca (offline/online) dos monstros de bolso: quando olhamos para a nossa box os pokémon com uma aura branca representam aqueles que o outro ainda não tem registado no seu pokédex. Assim como os pokémon evoluem consoante a experiência adquirida e tempo despendido, é importante que tudo o resto os acompanhe de igual forma.
Já que a última frase do parágrafo anterior termina com a palavra “igual” aproveito para discutir o sistema de combate. Fora algumas mudanças que irão possivelmente abanar o cenário competitivo (item Clear Amulet, a mudança de Hail para Snowstorm ou a Terastalização (permite adicionar um novo tipo ao pokémon a meio da luta)) o combate em Pokémon Scarlet/Violet, para a larga maioria da sua audiência, retém um sentimento evocado anteriormente: mesmice; todas as lutas decorrem da mesma forma desde a génese da franquia em 1998. Apesar da novidade do combate deixar de ser aleatório, passando a ser situacional consoante o contexto do mundo aberto, este continua por turnos com os entediantes blocos de texto, em especial os que efetuam alterações no ambiente ou pokémon, a pautarem a cadência lenta de cada confronto. Não ajuda que muitos ataques sejam, novamente, desinteressantes visualmente, mesmo após passar por um Pokémon Legends: Arceus onde vários eram bastante entusiasmantes (como Ceaseless Edge, por exemplo).
A ajudar à festa é a palavra dificuldade ser uma que não consta no dicionário de Pokémon Scarlet/Violet. Tanto os desafios encontrados ao longo do título, como os vários ginásios espalhados por Paldea, até aos momentos mais exigentes no final do videojogo, houve pouca coisa que conseguisse superar o meu pokémon starter de erva com um dos novos ataques introduzidos, e um ou outro situacional para colmatar diferenças de tipo. Cada luta tornou-se ela também tremendamente previsível, com os desfechos sempre a culminarem num pokémon terastalizado, e a inteligência artificial de Pokémon Scarlet/Violet a escolher estratégias fora da caixa (como insistências danadas em Growl ou Tail Whip). Safa-se, neste caso, um conceito introduzido em Pokémon Sword & Shield, os raids contra bichinhos mais fortes em conjunto (ou sozinho) com outros três treinadores. Estas batalhas necessitam um pouco mais de estratégia, mas a vitória é recompensada com itens importantes para o grind do endgame.

Uma das novas adições a Pokémon Scarlet/Violet é a possibilidade de criarmos um piquenique com os nossos pokémon. Esta mecânica, presente desde o início do jogo, por muito jovial que seja interagir com a nossa equipa, é um instrumento ineficaz e desinteressante para o decorrer da aventura. Serve, porém, mais para o endgame quando é recorremos a breeding ou shiny hunting. Fora essas situações muito específicas e esporádicas? É uma perda de tempo. Lamenta-se, então, o ênfase e atenção dada a esta mecânica, com vários componentes a ela ligada (mercearias e outras lojas) espalhados por todas as cidades repetidamente sem necessidade.
Talvez o melhor, por agora, seja desconstruir os novos pokémon lendários Miraidon e Koraidon, eternos companheiros do protagonista por toda a aventura, servindo maioritariamente como método de transporte fora um ou outro momento aclamado pela narrativa. Estes bicharocos estão cheios de personalidade, e mostram-se como um elemento importante do enredo, especialmente para desenvolver momentos de leveza, mas não deixo de sentir um misto de sentimentos com eles. Apesar de estes serem os nossos glorificados escravos HM (Herba Mystica em Pokémon Scarlet/Violet) a imaginação de vários fãs, eu incluído, sempre divagou para os diversos bichos utilizados para atravessar todos os biomas possíveis. Sinto que, com a introdução de um mundo completamente aberto à exploração perdeu-se uma oportunidade de ouro para fomentar essas ideias.
Algo que definitivamente irás enfrentar, dentro deste mundo aberto, é um teste ao teu sentido de orientação em Pokémon Scarlet/Violet. Como um dos chamarizes suprarreferidos da Gamefreak, apesar de estar desocupado e deserto, este apresenta-te imensas distrações que, para alguém com um curto défice de atenção como o meu, prova ser um desafio. Depois dos primeiros passos fora da academia até à batalha final tudo no mundo se resume a “Olha um pokémon novo” ou “Olha uma pokébola vermelha ali” e claro “Olha um treinador para enfrentar”. A estrutura de Pokémon Scarlet/Violet assemelha-se a uma fila de migalhas que vais colhendo, mas revela acabar em lado algum a não ser que abras o mapa e escolhas o próximo confronto para avançar com o enredo.

Visualmente, tanto em interface gráfico (aspeto paupérrimo) como estilo artístico empregue, não consigo não voltar a estabelecer pontos de comparação com Pokémon Legends: Arceus. Este distinguia-se pelo seu toque especial, um representação oriental em todos os pontos que entravam em concordância com o cenário, mundo e enredo; em poucas palavras: era coeso. Pokémon Scarlet/Violet mantém essa coesão, sim, mas deslumbra-te com uma interface do utilizador vulgar e desinteressante, nada o destaca, assim como tudo o resto onde a melhor expressão corriqueira que tenho para partilhar é “pokémon em 3D”. No meio de tanta falta de inspiração sobressaem, pelo menos, algumas faixas da banda sonora como, por exemplo, as Tera Raids, batalhas contra uma equipa inimiga e a última batalha do final do jogo.
Esta banalidade encontrada em todo o lado, sejam cidades plantadas no meio de nenhures, como uma representação de um oásis no deserto, ou algumas florestas que mais afiguram-se como planícies, poderia prever, pelo menos, um ótimo desempenho de Pokémon Scarlet/Violet na Nintendo Switch. Infelizmente, confirmo com angústia que as hipérboles expressas por essa Internet fora são, na realidade, autênticos eufemismos. Durante quase toda a aventura, jogada em modo televisão, constatou-se a representação do descalabro total: má performance constante e bugs ocasionais que tanto deram para o engraçado, como prejudicaram uma experiência de jogo com capacidade para ser impecável. Agora imaginem isso, mas em multijogador cooperativo com outras três pessoas a divagar pelo mundo aberto. Só o experimentei fazer duas ou três vezes, porque mais que isso não consegui tolerar. Não existe justificação para este estado senão a corrida para meter um produto nas prateleiras o quanto antes.

Positivamente destaco, contudo, toda a santa referência dedicada à península Ibérica nesta iteração; algo verdadeiramente lúdico de constatar: desde Cascarrafa e as suas alusões a Porto Côvo e à calçada portuguesa até a praça central de Mesagoza assemelhar-se ao Terreiro do Paço em Lisboa. Existe tanto por descobrir que só quem procura conseguirá encontrar. Ou então podem clicar neste link (imgur; não relacionado com a squared-potato.pt; ativo em 14/01/2023) e conferir as várias descobertas.
Deixo para trás muitas considerações à parte que irão ser colmatadas, em estilo livre, num episódio podcast especial Squared-Potato comigo e o colega Bruno Dores que podem ouvir aqui: