O terror assume diversas formas. Algumas psicológicas, galhofando com os sentidos da mente humana, causando um desconforto mental e outras mais sobrenaturais, distorcendo as leis da realidade e pondo em causa crenças religiosas. Contudo, para Henrique, protagonista de Silent Hill 4: The Room, nenhum subgênero deste estilo conseguirá comparar-se ao pânico de não pagar a renda do quarto a tempo e horas. Outrora como tencionam explicar todos os acontecimentos bizarros? Ou a porta fechada por dentro a sete chaves?
Brincadeiras à parte, aceitei o convite do colega Bruno Vieira (com um ano e piques de atraso; desculpa!) e trago ao público da Squared Potato o bem recebido, mas mal amado Silent Hill 4: The Room, lançado em 2004 tanto para PS2, Xbox e PC. Esta quarta iteração da série, publicada pela Konami e criada pela Team Silent, foi o último título principal da equipa que desenvolveu os outros três, pondo a franquia nos holofotes de uma mediocridade acima da média com Silent Hill: Origins, Silent Hill: Homecoming, Silent Hill: Shattered Memories e Silent Hill: Downpour.
Aliado à parte psicológica do artigo, está sempre presente no meu pensamento a nítida sensação que esta última guloseima da Team Silent nunca venceu junto dos fãs. É frequente ler mencionada a penitência de James Sunderland (até remake tem direito!) ou o amadurecimento literal e figurativo de Heather Mason, mas raramente sobre a claustrofobia e enclausuramento de Henry Townshend. Quiçá essa sensação seja um reflexo das minhas memórias?
Ironicamente, Silent Hill 4: The Room, na PlayStation 2, iniciou-me neste nefasto e perturbante mundo de videojogos focados em terror psicológico através de uma cópia emprestada. Nesses tempos inocentes tratou-se de uma demanda infantil para chegar ao final do enredo, proeza concluída sem morrer (no jogo, claro) na dificuldade normal. Porém, esta cegueira imatura ludibriou-me até aos dias correntes, onde escolhi pesquisar, relembrar e refletir nas minhas memórias para o artigo em questão.
Em qualquer instância, cada iteração anterior da franquia Silent Hill sempre teve este município destacado na frente do enredo e narrativa. De uma forma ou outra, toda a ação arranja mecanismos de passar-se lá. Porém, The Room foge à tradição centrando o enredo e narrativa no apartamento e quem lá passa a viver. Apesar do foco estar menos em puzzle-solving e mais no combate e na gestão do inventário (algo criticado), esta quarta iteração retém a aterrorizante e sombria magia da experiência Silent Hill.
É importante reconhecer que o título em epígrafe foi o canto do cisne da Team Silent; a última conquista da equipa enquanto coletivo, antes de vários elementos partirem para pastagens mais verdes nas suas carreiras profissionais. A natureza experimental da equipa revelar-se-ia não só com a dualidade da câmara tanto em primeira como terceira pessoa, mas também noutros elementos reféns da jogabilidade, explorando uma nova abordagem à narrativa e também à forma como induz terror nos jogadores.
Dito isso, não é surpresa para os fãs que a franquia Silent Hill seja reconhecida pela quase palpável atmosfera de pavor e desconforto, graças à ingenuidade de Masahiro Ito e restante equipa com o famoso nevoeiro, componente pertencente à maior parte dos títulos. O que começou como uma solução a limitações de hardware, transformou-se num dos elementos mais emblemáticos de video game design, obstruindo não só a visão do jogador, forçando um estilo de jogo mais cauteloso e lento, suscetível a erros, mas também um claro sentimento de isolação e claustrofobia.
Silent Hill 4: The Room debruça-se sobre esta temática mas, ao mesmo tempo, subverte expectativas ao não incluir o elemento mais característico da franquia. Ao contrário dos outros três jogos, The Room inicia com Henry preso no seu apartamento sob ângulo em primeira pessoa (esta uma novidade na jogabilidade) longe da titular cidade Silent Hill. Apesar de um constante sentimento inquietante, durante uma boa parte da aventura é possível interagir com o espaço ao redor de Henry de forma segura.
Trata-se, no entanto, de uma armadilha já conhecida neste género de videojogos, pois fora descrições aparentemente normais dos objetos mais banais Henry (e por consequência o jogador) entende, ao olhar pela janela do apartamento, que o mundo lá fora decorre com uma assustadora e aparente tranquilidade. É um sentimento reconhecido como o mecanismo narrativo Uncanny Atmosphere, utilizado aqui em barda. Assim, apresentando-se como novidade na franquia, este enclausuramento irradia uma atmosfera bastante claustrofóbica, com o ponto de vista em primeira pessoa a enaltecer essa experiência.
Já é habitué da franquia Silent Hill (até certo ponto) mexer com o nosso estado de espírito, utilizando a banda sonora e efeitos sonoros desconcertantes, mas o princípio de The Room começa com uma pequena intro que até hoje dá-me um nó no estômago (não a vejam à noite). Logo de seguida vivenciamos um pesadelo sinistro que Henry afirma ter há várias noites, para posteriormente acordar e encarar a realidade da porta do seu apartamento estar acorrentada por dentro.
É uma primeira impressão forte e agoniante, uma que estabelece um par de expectativas ao jogador não fosse, minutos depois e de forma repentina, abrir-se um buraco na casa de banho do apartamento. Esta alusão à metáfora down the rabbit hole do clássico de Lewis Carrol é literal, transportando a personagem principal por vários níveis, todos eles diferentes e cada um com uma estória por contar. Com isto, cria-se uma divisão dentro do mundo fictício onde o apartamento é inconscientemente considerado como um porto seguro, um descanso da onirodinia.
Porém, sensivelmente a meio da aventura, Henry perde essa benesse, com o apartamento a ser local de várias assombrações que trabalham contra o pobre inquilino, subvertendo novamente a expectativa que aquele lugar continuaria a ser seguro até ao fim. Assim, graças a essa decisão, provoca-se tensão no jogador como nenhuma outra iteração até agora fez, carregando a ideia que não existe um verdadeiro abrigo até o pesadelo terminar.
Criticamente falando, Silent Hill 4: The Room reúne consenso público em ser o título mais assustador da franquia mas a narrativa, por vários motivos, é decididamente mais fraca. A lore que introduz é importante e preenche uma lacuna no enredo geral, mas a forma como a trama é entregue deixa a desejar, e o combate desajeitado, até agora não referido, também não ajuda.
Ainda assim é uma recomendação que faço de peito cheio. Não só The Room tem outras valências dignas de serem exploradas, mas é também o título da franquia mais facilmente jogável. Este está disponível na GOG por €9.99 (mais barato ainda na promoção) e ainda tem uma página na PCGamingWiki dedicada a melhorar a experiência do jogador (embora um pouco redundante para a versão GOG) tornando qualquer altura a ideal para enfrentar os vossos demónios.