O realizador britânico Matthew Vaughn regressa ao mundo dos espiões com The King’s Man- O Início, uma prequela que explora os eventos que culminaram na criação da agência de espiões de Savile Row. Num misto de comédia e drama, Vaughn procura expandir este universo, retendo elementos das suas origens nas bandas desenhadas.
Muitos recordam-se de Kingsman: Serviços Secretos, de 2015, como a obra que introduziu Eggsy, Harry Hart (conhecido como agente Galahad) ou Hamish Mycroft (ou Merlin, para os membros da Agência) para o público. De facto, foram muitos os fãs que conheceram as aventuras dos espiões através do filme. Contudo, é nas bandas desenhadas que é possível testemunhar a génese deste universo de espionagem.
The Secret Service (em Portugal lançada como Kingsman: Serviço Secreto) é uma banda desenhada lançada em 2012 e viu a união dos lendários Mark Millar famoso por obras como O Legado de Júpiter, Kick-Ass e Guerra Civil, Dave Gibbons, ilustrador britânico conhecido pelo seu trabalho em Watchmen com o próprio Mathew Vaughn como co-argumentista naquela que era uma tentativa de reinventar as histórias de espionagem para o século 21, enquanto prestava homenagem ao mundo dos espiões retratado na cultura Pop.
Jack London, um agente secreto britânico sente-se culpado por não passar mais tempo com a sua família e decide recrutar o seu sobrinho Gary “Eggsy” Unwin para o Serviço Secreto Britânico, enquanto procura acabar com os planos de James Arnold, um vilão que procura erradicar 90% da raça humana e raptar algumas das celebridades mais famosas do mundo. Ao longo de seis volumes acompanhamos a transformação de Gary, que após ser salvo da prisão por Jack, abandona a sua natureza de rufião, trocando-a por modos mais cavalheirescos, dignos de um espião. Sexo, sangue, comédia e planos mirabolantes de controlo do mundo são clichês conhecidos, e The Secret Service abraça-os.
Não são poucas as vezes que vemos Jack a fugir de vilões num carro reminiscente ao Aston Martin DB5 do Bond, ou Eggsy a arrumar capangas da mesma forma que o Jason Bourne faria. Mas apesar dos clichês, The Secret Service consegue ser único, num mercado cansado de espiões britânicos o que lhe valeu duas continuações: The Big Exit, de 2017, lançada na revista Playboy (sim, na Playboy); e The Red Diamond, publicada entre 2017 e 2018.
Apesar de acumular alguns fãs, Matthew Vaughn compreendeu que a história de Eggsy tinha muito mais potencial. Acreditando no potencial deste universo, o argumentista procurou expandir a história para o audiovisual. Apesar da história, no seu cerne, se manter intacta (ainda vemos um rapaz chamado Gary “Eggsy” Unwin a ser recrutado para uma agência de espiões para travar um vilão com planos de acabar com parte da população mundial), Vaughn alterou elementos que, a meu ver, se revelaram fulcrais para o sucesso desta franquia.
A começar, Jack já não existe, sendo substituído por Harry Hart, um agente da agência Kingsman (agência esta que ganhou o nome da loja que alberga), conhecido por agente Galahad, uma nova denominação dos agentes, fazendo referência à lenda do rei Artur e aos seus agentes da Tábula Redonda, e foram cortadas as relações familiares entre Eggsy e o agente. James Arnold foi substituído por Richmond Valentine, interpretado por Samuel L. Jackson, cuja estranheza e insanidade foram elevadas à máxima potência. Vaughn decidiu expandir sobre o treino de Eggsy, mostrando os exercícios que o levaram a tornar-se num superespião, algo que fica subentendido nas páginas de Millar.
Assim, a 25 de janeiro de 2015 saía Kingsman: Serviços Secretos, e Eggsy e companhia entraram no panteão dos superespiões do audiovisual, ao lado de Bourne, Hunt, Bond e Baauer. Taaron Egerton e Colin Firth encabeçam o elenco nos papéis de Eggsy e Galahad, aliados a um elenco de peso. O destaque, claro, vai para Mark Strong, cuja presença enquanto Merlin é hipnotizante. A meu ver, esta é uma das melhores adaptações de banda desenhada algumas vez transpostas para o audiovisual. Vaughn conseguiu transportar a energia da banda desenhada para o grande ecrã, dando profundidade às personagens e às suas motivações, enquanto extrapolou ao máximo alguns elementos.
Contudo, o destaque vai para as cenas de ação. As lutas neste filme são eletrizantes, cheias de energia e muito bem coreografadas. O espectador acaba por ficar contagiado pela energia dos planos e não se perde com os rápidos movimentos de câmara. Os destaques, claro, são as cenas de luta no pub, quando Eggsy descobre mais sobre a sua ligação à agência, e na igreja do Kentucky. Nunca antes tinha visto cenas de luta tão longas, tão eletrizantes e tão bem coreografadas e editadas. É impressionante!
O filme foi um sucesso inesperado o que garantiu uma sequela dois anos depois em Kingsman: O Círculo Dourado. Vaughn regressa à Agência para narrar as aventuras de Eggsy, enquanto este se esforça para parar Poppy Adams (interpretada por Julliane Moore) e o seu plano de chantagem ao presidente com a contaminação do mundo das drogas. Contudo, Eggsy não estará sozinho. Após um ataque ao quartel-general da Kingsman, Eggsy e Merlin vêm-se obrigados a pedir ajuda à Statesman, a versão americana da Agência.
Este transporte para a cultura americana foi muito bem-vindo, na minha opinião. Em parte, associado ao carisma que Pedro Pascal (que vinha do sucesso de Narcos, da Netflix), Halle Berry, Channing Tatum e Jeff Bridges trouxeram para a narrativa, enquanto agentes da Statesman. Contudo, o filme peca por dar ênfase aos momentos cómicos e disparatados, comuns nas bandas desenhadas, em detrimento dos momentos emocionais das personagens. O filme acaba por perder parte da alma que compunha a narrativa do primeiro filme, parecendo algo feito por uma máquina: um filme que agrada os estúdios e entretém os espectadores mais desatentos.
O que nos traz a The King’s Man- O Início. Depois de tantos adiamentos, será que Vaughn se consegue redimir dos erros cometidos no filme anterior?
Há que louvar a tentativa do realizador em abandonar os elementos já conhecidos pelos fãs da saga. Pela primeira vez, não acompanhamos Eggsy, Galahad ou Merlin nem não são utilizados gadgets mirabolantes. O que, vamos ser honestos, era de se esperar quando se trata de uma narrativa que se passa quase 100 anos antes da história do primeiro filme.
Acompanhamos a história do duque Orlando Oxford, interpretado Ralph Fiennes, um militar que, arrependido dos seus atos, deixou o serviço ativo para se juntar à Cruz Vermelha. Contudo, após a morte da sua esposa na Guerra dos Bôeres, em 1902, Oxford toma como principal missão de vida proteger a vida do filho Conrad, interpretado por Harris Dickinson.
Porém, com o eclodir da Grande Guerra, a vida de Oxford muda de rumo, e o duque precisa correr contra o tempo para impedir que os planos de extermínio de uma organização criminosa cheguem a vias de facto. Acompanhado dos seus criados Polly e Shola, interpretados por Gemma Artenton e Djimon Hounsou, Oxford viaja pela história da Primeira Guerra Mundial, interagindo com algumas das figuras mais importantes da história do mundo, enquanto planta as raízes da Agência que viria a acolher Eggsy mais tarde.
É preciso ter em mente que esta é, para todos os efeitos, uma adaptação de uma banda desenhada. Portanto, toda e qualquer extrapolação da realidade é propositada. O público geral já está habituado a este tipo de filme. Afinal, a Marvel faz milhões todos os anos com a “uniformização” das suas obras. Não vão ver um Homem de Ferro a voar pelos campos de batalha, não se enganem. Mas também não se surpreendam com a pura bizarria que esta obra nos traz.
Tendo isto em consideração, quero avisar os viciados pela história da Primeira Guerra que não há qualquer tipo de comprometimento com o rigor histórico. A indumentária é característica dos tempos e os cenários remetem para uma época anterior à dos nossos avós. Contudo, a exatidão dos acontecimentos históricos é inexistente, fazendo deste um resumo histórico muito disparatado. Em certos pontos, até estranho. Parece que Vaughn apela para o seu lado mais britânico, garantindo-nos que o conflito foi culpa de uma antiga nação rival dos bretões.
Porém, não é o papel do filme tratar dos factos históricos. Ninguém olhará para este filme da mesma forma que se olha para um 1917 (2020), por exemplo. O foco é a diversão, e não assertividade histórica. É como o magnífico Sacanas sem Lei (2009), de Quentin Tarantino: uma ótima sessão, se ignorada a exatidão dos factos históricos inerentes à obra.
Orlando Oxford é o protagonista da película. Oxford é um aristocrata que, apesar de calejado e ciente dos custos que a guerra acarreta, não consegue deixar de se preocupar com o estado da nação britânica. Ralph Fiennes, ator já conhecido da indústria por papéis como Amon Goeth, n’A Lista de Schindler (1993) interpreta como Oxford. Como grande fã de 007 que sou, estava com medo de não ver a personagem e ver apenas Gareth Mallory, das aventuras de Bond.
Contudo, o fardo que carrega na voz, fardo esta resultante da perda da sua esposa, não rouba espaço à preocupação que o mesmo tem pelo filho. As preocupações são visíveis na cara do ator, quando a personagem se vê obrigada a levar o filho para as missões, quebrando a promessa que fez à esposa. Uma característica interessante da personagem é a perna manca que a personagem tem. Como consequência da morte da sua esposa, Oxford levou um tiro na perna, uma forma de se lembrar constantemente da sua esposa e da promessa feita à mesma. O que não tira do timing de comédia que o ator traz. Como Conrad é alguém austero e que carrega muita amargura, é muito engraçado quando este se atrapalha. E a comédia que advém do mesmo não é excessiva nem muito forçada. Sem sombra de dúvidas, foi com Oxford que eu mais me identifiquei.
Mas também me identifiquei com o filho, Conrad Oxford. O jovem, que viu a sua mãe morrer quando era criança, desenvolveu uma ânsia de ver o mundo tão grande que, com o advento do conflito, desenvolveu uma necessidade inexplicável de lutar pela nação. Para grande desgosto do seu pai, Conrad quer ver o mundo, quer fugir às amarras que o pai insiste em pôr sobre a sua vida, o que leva a que o mesmo desenvolva, de forma inconsciente, um sentimento de rebeldia pouco comum para um jovem daquela altura. Harris Dickinson, cuja carreira era-me desconhecida, faz um ótimo trabalho ao mostrar o conflito interno que Conrad sente em relação ao pai. Apesar de não o querer desapontar enquanto filho, não quer desapontar o rei e a nação, sentimento patriota comum a jovens desta altura (um resultado da campanha massiva de recrutamento).
A dinâmica que Conrad desenvolve com o próprio pai é interessante, e é algo que acompanha a trama da fita. Os pequenos-almoços que as personagens mostram muito daquilo que vai na mente das personagens. De certa forma, remete para a dinâmica de Eggsy com Galahad, e é algo recorrente ao longo do filme. Sem querer estragar a experiência de ninguém, mas este filme subverte os temas da saga a seu favor. A dinâmica entre estas personagens é só um exemplo.
O restante elenco que compõe esta obra é soberbo. Além dos já mencionados acima, ainda temos Charles Dance (o famoso Tywin Lannister de Guerra dos Tronos), Daniel Brühl, Matthew Goode e Alexandra Maria Lar a adornar o enredo. Porém, o meu destaque vai para Rhys Ifans, que interpreta a personagem mais bizarra, hilariante e eletrizante deste filme: Grigori Rasputin. Como disse anteriormente, não há qualquer tipo de comprometimento com o rigor histórico.
Porém, se esta já é uma figura de destaque na nossa História, Ifans dá a Rasputin uma aura mais mística e sombria. Lembremo-nos de que estamos a falar de um homem que, na vida real, escapou à morte mais vezes que as próprias personagens neste filme. Sem querer estragar a vossa experiência com esta fita, mas é possível ver Rasputin a praticar vários tipos de hipnose e, atrevo-me a dizer, magia na grande parte das cenas que a personagem aparece. Foi como disse acima, é uma herança das bandas desenhadas. Sempre que está em cena, Rasputin é o destaque, e não há como ignorar este facto.
Como foi dito anteriormente, Kingsman prima-se pelas cenas de ação frenéticas. Cenas longas, sem cortes, com movimentos frenéticos da câmara são a imagem de marca da série. Antes de ver este novo filme admito que estava inseguro em relação às cenas de ação que iria ver. Como é que a energia das bandas desenhadas se iria traduzir para um cenário de Primeira Guerra Mundial sem se tornar demasiado estranho? Este pensamento certamente correu pela mente de Vaughn.
O que vemos em The King’s Man é, então, uma ação mais “calma”, por assim dizer. Aquelas cenas alucinantes dos filmes anteriores deram lugar a uma ação mais metódica, menos espalhafatosa e mais presa ao real. Ainda há cenas de ação absurdas, especialmente perto do final do filme, mas, no geral, a câmara não acompanha tanto os socos, pontapés e estocadas das personagens como nos outros filmes. Um detalhe que achei curioso é que, à medida que o filme vai atingindo o climax, vai abandonando o realismo e tornando-se cada vez mais absurdo. Nada que contradiga o ambiente e época do filme, mas mais fantasioso que o que seria de esperar. Mas, para todos aqueles que partilhavam esta minha preocupação, fiquem descansados: a ação do filme entretém.
Este tópico leva-me à minha principal crítica ao filme. Durante o filme, precisei de me lembrar várias vezes que The King’s Man era, de facto, uma adaptação de uma série em banda desenhada. Apesar da proposta ser a de um filme mais sério, o que é louvável, a verdade é que passa para o espectador uma sensação de incerteza da parte do realizador. Parecia que Matthew Vaughn não sabia como abordar algumas das cenas. Na primeira metade do filme, em especial, achei que o filme andou demasiado perdido. Ora era sério demais para a proposta que tinha, ora era mais leve para a época que representava.
Quero dar destaque à música. A parceria de Henry Jackman com Matthew Margeson foi abandonada nesta película, sendo Jackman substituído pelo compositor inglês Dominic Lewis. A tarefa de substituir Jackman não era fácil, visto que o inglês já é um veterano na indústria. Mas Dominic Lewis não é mau enquanto compositor. A maior falha que tenho a apontar é o facto de não ser tão memorável como as anteriores.
Não há um ”Manners Maketh Man” (2015), um “Kingsman Hoedown” (2017) ou até mesmo um “No Time for Emotion” (2017), por mais bizarro que seja. Mas é boa. E acima de tudo, adequada. O uso do violino e dos tambores para é especialmente pertinente, remete imediatamente para um ambiente militar. O meu destaque na banda sonora vai para “The King’s Man”, “The Promise” e “The Cost of War”. “Knights of the Roundtable” foi a peça que mais me remeteu para os restantes filmes da série. É muito boa.
Numa última nota, creio que, pela primeira vez numa obra do universo Kingsman, o tópico das classes sociais não faz parte do desenvolvimento das personagens. Para quem não sabe, ou simplesmente não se tinha apercebido, este é um tópico que permeia as histórias desta saga, de uma forma ou de outra. Já em 2013, Millar fez questão de colocar esta discussão como foco central da narrativa. Enquanto treinava, Eggsy era constantemente subjugado pelos seus pares por pertencer a uma classe mais baixa da sociedade, que assumiam que o mesmo é menos capacitado para se tornar num espião.
Porém, quando regressa ao meio em que cresceu, Gary é julgado como “burguês” pela mãe e pelo padrasto, como alguém incapaz de compreender os problemas de alguém “mundano”. Esta discussão é adaptada para o filme de 2015, dando a Harry um papel de mentor mais forte que Jack tinha. É com Harry que Eggsy realmente aprende a ser um cavalheiro, algo que, curiosamente, é ofuscado na banda desenhada.
No começo d’O Círculo Dourado, Eggsy tem de provar aos pais da sua namorada que é digno do seu respeito. Apesar da cena ter tons cómicos e um desfecho trágico, é um e. Ao entrar na sessão, esperava que esta questão viesse à tona. Afinal, esta época histórica era propícia a isso. Contudo, não consegui identificar esta discussão na narrativa da película. Pessoalmente, não senti que a ausência deste tópico desmereceu a história do filme e das personagens.