Arquivo de Guerreiras do K-Pop

O novo musical de animação KPop Demon Hunters (ou Guerreiras do K-Pop, em portiguês) deixou a internet em polvorosa e não foi por menos: colocando-se em número um nos filmes da Netflix, contou com uns impressionantes 33 milhões de visualizações nas primeiras duas semanas de estreia, que se deu no dia 20 de Junho. Nesta análise, irei explorar alguns dos detalhes que tornaram este título tão especial e algumas curiosidades que possas ter perdido. Vamos lá! Dados Principais KPop Demon Hunters foi realizado por Maggie Kang e Chris Appelhans, produzido por Michelle Wong, e co-produzido por Scott Berri e Jacky Priddle. O filme foi escrito por Kang, Appelhans, Hannah McMechan e Danya Jimenez, baseado no conceito original criado por Kang. Foi animado pelos estúdios-irmãos Sony Pictures Animation e Sony Pictures Imageworks (pela mesma equipa de Spider-Man: Across the Spider-Verse, liderada por Josh Beveridge), com Helen Chen como designer de produção, edição de Nathan Schauf, e composto musicalmente por Marcelo Zarvos. História https://www.youtube.com/watch?vAzCAwdp1uIQ KPop Demon Hunters segue a história das Huntr/x, um grupo de K-Pop feminino composto por Rumi, Mira e Zoey, que vivem vidas duplas como guardiãs secretas do mundo. Por detrás do glamour dos palcos, estas superestrelas protegem os seus fãs de ameaças sobrenaturais – demónios que sugam as almas dos humanos para alimentar o seu líder sinistro, Gwi-Ma – através de uma barreira que mantém os espíritos malévolos afastados, chamada Honmoon. O seu trabalho complica-se ainda mais quando um grupo de K-Pop masculino chamado Saja Boys surge e conquista tudo e todos, competindo com as raparigas pelo pódio. Mas estes rapazes não são bem aquilo que parecem e cabe às Huntr/x travá-los antes que seja tarde demais. Elenco Alguns dos nomes que encontras neste filme incluem Arden Cho (Teen Wolf, Avatar: The Last Airbender) como Rumi, May Hong (Tales of the City) como Mira, Ji-young Yoo (Until Dawn) como Zoey, Ahn Hyo-seop (The Business Proposal) como Jinu, Yunjin Kim (Money Heist: Korea) como Celine, Lee Byung-hun (Squid Game) como Gwi-Ma, Ken Jeong (The Hangover, Community) como Bobby, SungWon Cho (Youtuber) como Abby, Alan Lee (Mortal Kombat 1, Solo Leveling: ReAwakening) como Mystery, Joel Kim Booster (comediante) como Romance e até um cameo de Daniel Dae Kim. Uma das vantagens em não utilizar actores famosos (pelo menos para o público ocidental) para dobragens numa película de animação é poder experienciar uma imersão total, e foi isso que aconteceu com KPop Demon Hunters. Consegui conectar-me com cada personagem, sentir totalmente a paixão, desespero, tristeza e triunfo de cada um e, especialmente, o companheirismo e química que existiam entre eles. É difícil não pensar neste filme como um projecto familiar, repleto de carinho e paixão pelo que estava a ser feito, considerando que foi algo que demorou NOVE anos a ser afinado e aperfeiçoado até chegar ao produto final. Personagens Senti que cada personagem era original tanto na sua personalidade como no seu design, e não apenas cópias com um cabelo ou roupa diferentes: os traços faciais eram facilmente distinguíveis, a própria forma de andar e de se comportar, e as reacções ao mundo em seu redor. O cuidado em manter a individualidade das Huntr/x não me passou despercebido, e trouxe um toque muito satisfatório à experiência. Senti, realmente, que estava a seguir a vida de três amigas muito próximas, com gostos e problemas comuns que, por acaso, também lutavam contra o crime ao mesmo tempo que eram estrelas internacionais. É fácil gostar delas e torcer por elas, aceitando os seus defeitos tal como as suas qualidades. Com os Saja Boys também existem nuances suficientes para sentirmos que são seres de carne e osso, apesar dos excessivos tons pastel e penteados demasiado perfeitos, mas com algo misterioso a rondar a superfície... Intrigam e deixam-nos expectantes, sendo absolutamente adoráveis ao mesmo tempo. Jinu destaca-se desde o início, com os restantes membros a servir quase como figurantes, mas penso que foi uma escolha necessária de modo a não complicar demasiado o enredo e focarmo-nos apenas no mais importante. A sua história é cativante e mantém-nos vidrados ao ecrã a querer saber mais do seu passado e razões por detrás das suas escolhas, além de nos fazer ansiar por um final feliz. As suas várias camadas são essenciais para cada reviravolta do enredo e são reveladas a um passo perfeito. O vilão providenciou tensão q.b. e maldade credível com um toque de humor. O facto de não ter uma face ou corpo pode dificultar a nossa conexão com ele ao início; no entanto, as suas intenções são coerentes e nunca nos sentimos totalmente seguros em relação ao que irá acontecer ao mundo dos humanos e dos demónios. O perigo é real, com altos riscos caso o mal prevaleça. Gostava de ter visto mais da Celine e, sobretudo, o papel que esta teve na vida das protagonistas. É uma personagem mais complexa do que inicialmente se pensa e poderia ter tido um papel muito mais poderoso na história. Mas, novamente, não há tempo para tudo... Ao menos houve bastante comic relief das restantes personagens secundárias para animar a malta! Visuais Os visuais de KPop Demon Hunters foram criados pela mesma equipa dos estúdios da Sony Pictures, responsáveis por Spider-Man: Across the Spider-Verse, utilizando um leque de artistas variado e cheio de talento, muitos dos quais coreanos. Uma das maiores dificuldades dos animadores foi, talvez, conseguirem capturar na perfeição os vários tons da narrativa, que variam entre o dramático e poderoso, o sincero e emotivo, o brincalhão e trapalhão, entre muitos outros, o que é um grande desafio técnico. Entre videoclips, fotografia editorial, k-dramas, iluminação de concertos e anime, todos serviram de inspiração à equipa de animação. O espectador apanha com o estilo hiper-exagerado chibi/demi-chibi nas partes mais ridículas da história, linhas mais pronunciadas e mais angularidade em partes agressivas, e focagens de luz mais suaves e efeito bokeh em partes mais calmas. O objectivo era ter um estilo bastante fotográfico e editorial, com uma moda avant garde, pegando na estética do 2D mas com uma linguagem 3D, e prestando especial atenção às caras dos personagens. E penso terem-no conseguido. As sequências de cenas fluem dinamicamente, o que também revela um óptimo trabalho de guião, e cada uma é um presente para os nossos olhos se poderem deliciar infinitamente. Não só nos deparamos com as expressões faciais mais hilariantes, como também somos presenteados com coreografias de dança e cenas de luta de cair o queixo, além de animações e escolhas de design que rivalizam os videoclips de K-pop. Em relação aos estilos de cada personagem e grupo musical, os realizadores trabalharam directamente com os animadores para estabelecer quem queriam como inspiração para as Huntr/x e os Saja Boys, acabando por misturar vários ídolos coreanos famosos. Também utilizaram actores de k-dramas para inspiração. A tática de animar os personagens em dois – ou seja, dar poses diferentes às personagens a cada dois frames – foi utilizada para as Huntr/x, o que confere uma vibe choppy de banda desenhada à animação e funcionou tão bem em Spider-Verse como aqui. Mas também utilizaram a técnica de uns – uma pose diferente em cada frame – para os Saja Boys, por uma razão de narrativa que vou deixar em aberto para evitar spoilers… Banda Sonora Sendo o filme um musical, não poderia deixar de enaltecer a banda sonora, que ficou realmente fantástica. Mas não te iludas a pensar que vais ver mais um musical tradicional da Disney, porque KPop Demon Hunters supera todas as barreiras e rótulos que possas conhecer. https://open.spotify.com/album/14JkAa6IiFaOh5s0nMyMU9?si76mNnycORxGLOrWVAR6RZw As vozes de Ejae (Rumi), Audrey Nuna (Mira), Remi Ami ( Zoey), Lea Salonga (Celine), Andrew Choi (Jinu), Samuil Lee (Romance), Kevin Woo (Mystery), Neckwav (Abby) e Danny Chung (Baby) foram, realmente, escolhidas a dedo e não poderiam ter funcionado melhor. Ejae foi uma estagiária da mítica SM Entertainment e Kevin Woo fez parte do grupo de K-pop U-KISS. Também as letras e instrumentalização ficaram maravilhosos, com faixas energéticas e cheias de poder, outras mais sentimentais e tocantes, numa mistura muito bem conseguida e perfeita para fãs de K-pop – mas não só. Penso que qualquer amante de música pop e electrónica irá poder apreciá-la. https://www.youtube.com/watch?vQGsevnbItdU Não fosse o álbum KPop Demon Hunters estar nos tops do Global Spotify, acima de grupos como os próprios BTS e Blackpink, com as bandas fictícias Huntr/x e Saja Boys a arrecadar cada vez mais ouvintes diariamente e a chegar ao número 1 deste ano. Aliás, os Saja Boys tornaram-se no primeiro grupo masculino de K-Pop a chegar ao número 1 na história das tabelas do Spotify! Também podes encontrar músicas originais das Twice (“Strategy”), Melomance (“Love, Maybe”), Jokers (“Path”) e Marcelo Zarvos (“Score Suite”). As Twice também cantam uma versão de “Takedown”, originalmente pelas Huntr/x. No geral, um álbum que consegue existir totalmente à parte do filme e manter a sua legitimidade, animando e juntando os fãs de K-pop. https://www.youtube.com/watch?v983bBbJx0Mk Os produtores musicais Teddy Park (fundador da THEBLACKLABEL), Lindgren (detentor de um Grammy), Stephen Kirk (BTS, Tomorrow x Together), Jenna Andrews (BTS, Drake, Jennifer Lopez) e, em especial, Ian Eisendrath (conhecido pelos musicais da Broadway Come from Away e Only Murders in the Building) em conjunto com a Sony Music fizeram, também, a diferença na banda sonora do filme, trazendo ao de cima o que mais de teatral existe no K-pop e incorporando-o numa narrativa divertidíssima e profunda em partes iguais. É, simplesmente, impossível não acompanhares o rap explosivo de “How It’s Done”, abanares os ombros com a divertida “Soda Pop”, sentires uma súbita vontade de querer atingir todos os teus objetivos com “Golden”, pensares em todos aqueles que gostarias de dar uma liçãozinha durante “Takedown”, sentires o teu coração contrair com os versos emocionantes de “Free”, quereres libertar o teu verdadeiro Eu com “What It Sounds Like”, ou até teres arrepios durante o obscuro e hipnótico “Your Idol”. https://www.youtube.com/watch?vyebNIHKAC4A A verdade é que todas as músicas são extremamente catchy e não vais conseguir não as cantarolar durante dias (ou semanas) após veres o filme. Ah, e se quiseres um bónus, vale bem a pena espreitar a versão de Ahn Hyo-Seop de “Free” (originalmente cantada por Andrew Choi) que este disponibilizou no Instagram: https://www.instagram.com/reel/DLj4TpjNrAF/ Temas O poder da música na união e aceitação das pessoas tem um papel fulcral no filme: o K-pop e a conexão entre fãs, e entre fãs e os seus ídolos, enquanto uma grande família. Outro dos principais focos da narrativa baseia-se na noção de vergonha e em carregar essa vergonha durante muito tempo até nos podermos libertar dela. Algo que faz intrinsecamente parte da cultura coreana e foi explorado lindamente no filme. Também as noções de verdade interior e sermos autênticos connosco próprios foram abordadas de forma intensa mas cuidadosa, podendo espelhar-se nos espectadores e puxá-los para dentro do ecrã, revendo-se claramente em personagens como Rumi. A importância da diversidade, de sabermos quem somos e que carregamos a nossa própria beleza e charme únicos, os quais são essenciais preservamos, permaneceram ao longo da história. A mensagem final prende-se em derrotar e ultrapassar os nossos medos e inseguranças, que podem criar atrito e dificuldades em nos relacionarmos com aqueles que mais amamos, de forma a melhor nos podermos conectar com eles. Só quando deixamos de carregar esse fardo podemos tornar-nos no nosso Eu verdadeiro e estar presentes autenticamente na vida dos nossos entes-queridos. Referências Coreanas A equipa tentou fazer KPop Demon Hunters sentir-se o mais coreano possível, e uma das formas utilizadas foi incorporar o máximo de elementos coreanos em cada cena: não só criaram um cenário moderno completamente credível e esteticamente deslumbrante como também incorporaram pedaços da cultural tradicional e mitologia coreanas. Alguns exemplos tradicionais incluem: personagens inspirados nos dokkaebi (goblins traquinas), o tigre e a pega (jakho-do) como símbolos de poder e boa sorte, a dinastia Joseon presente em vários constituintes e especialmente no conceito de espírito da morte (jeoseung-saja) que dá o visual aos Saja Boys, as árvores sagradas Dangsan, motivos nos panos de pintura coreanos tradicionais durante performances das Huntr/x, as armas das Huntr/x inspiradas em objectos e armas espirituais usadas por xamãs, os trajes usados pelos Saja Boys inspirados nos hanbok e chapéus tradicionais coreanos, as casas de estilo hanok e giwajip tradicionais com telhados de tijolo e os pendentes norigae usados pelas Huntr/x. Já de ingredientes contemporâneos temos: comidas como kimbap e ramyeon, os variety shows, as velhotas (ahjumas) com os seus fatinhos de treino e cabelos encaracolados, o curandeiro com as suas mezinhas duvidosas, as saunas colectivas, e imensas referências à cultura do k-pop como eventos de assinaturas, guerras entre fãs no Twitter/X, programas musicais competitivos, desafios de dança, presenças no Met Gala, rumores de relações amorosas entre ídolos e a competitividade das tabelas de música. Curiosidades O gato da realizadora Maggie Kang foi a maior referência para o desenho e personalidade do tigre de estimação do Jinu. Ahn Hyo-Seop foi escolhido por Kang depois de esta ter visto o k-drama A Business Proposal e ter ficado impressionada com uma cena onde este fala um inglês perfeito. Aí, teve o seu momento de “É este o nosso Jinu!” Também Lee Byung-hun foi um nome com que Kang cresceu e, portanto, uma escolha óbvia durante o casting para o papel de Gwi-Ma. O design do Jinu foi inspirado directamente nos actores Cha Eun-woo e Nam Joo-hyuk. Já a Mira foi inspirada pela modelo Ahn So Yeon. Enquanto trabalhava no design do filme, a equipa organizou uma viagem à Coreia para se certificar que ilustravam tudo o mais fielmente possível – incluindo detalhes da paisagem, a textura dos materiais de construção das casas e ruas – algo impossível de capturar a não ser que se esteja pessoalmente no local. Exploraram e tiraram fotos para referência em locais como Bukchon e Myeongdong, conseguindo depois utilizar esses apoios durante a fase de design. A ideia das Huntr/x veio directamente do xamanismo coreano, e especificamente de um ritual chamado gut (굿), onde os espíritos malignos são asfastados usando música, dança, um traje e encantamentos. No filme, os primeiros caçadores eram xamãs. A palavra saja, em coreano, tem dois significados: leão (사자) e também faz parte da palavra para ceifador da morte (저승사자) ("jeoseung saja"). Depois de veres o filme, perceberás melhor o duplo significado da expressão em relação aos Saja Boys... Conclusão Honestamente, a única coisa a apontar neste filme é, mesmo, o facto de ser demasiado curto. E não apenas no sentido em que queria que fosse mais longo para poder apreciar mais (claro) mas também no sentido em que me pareceu apressado: a história em si tem material suficiente para ser consistente e satisfatória, mas notei que faltava… Algo. Existem rumores de que a Netflix tenha pedido à equipa por detrás de KPop Demon Hunters para não ultrapassarem a hora e meia de duração... Alegadamente. No entanto, a realizadora já veio a público negá-los. Caso fosse verdade, explicaria este vazio de complexidade que destoou em tudo o resto que KPop Demon Hunters representa e mostra… Ficam as dúvidas. Mais uma horinha e ficava contente! Existiam imensas ideias que não tiveram oportunidade de serem exploradas e isso frustrou-me bastante. Fomos roubados de tanta coisa: as histórias de fundo de Mira e Zoey, o passado de Celine, um ISAC (Idol Star Athletics Championship), um certo encontro romântico no Aquário (não vou dizer mais para evitar spoilers)... Não custa manifestar uma versão director’s cut, pois não? Felizmente, o final deixou bastante pano para mangas, e os próprios realizadores admitiram que estão prontos para uma sequela, pelo que fico a aguardar ansiosamente o anúncio da parte dois! E tu, já viste KPop Demon Hunters? O que achaste?

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