Muito antes dos prémios, das estreias, dos trailers, Flow já vivia nos nossos corações, antecipando uma aventura ternurenta ainda que não soubéssemos o destino que nos reservava. Confesso que sou um pouco suspeita. Tenho muito carinho por animais e em especial acho os gatos criaturas fascinantes.

Efetivamente, tenho 2 espécimens que observo e acompanho com intriga, e tomo mentalmente notas sobre as suas personalidades e feitios (que não podiam ser mais opostos), as suas exteriorizações e tentativas de estabelecer uma comunicação minimalista, ajudam-nos a articular melhor o nosso dia a dia para que todas as suas necessidades sejam atendidas. Talvez um dia, alguém possa estabelecer um dicionário mais sério, mas facto é que com 3 pessoas em casa, eu sei exactamente o som que uma delas usa para se referir à minha pessoa.

Como tal, assim que vejo um gato no papel principal, não preciso de mais argumentos de promoção, nem trailers que desmistifiquem o filme todo. Quero saber até onde os humanos são capazes de levar a narrativa, sem avisos prévios, porque ainda há muita gente que não sonha com a complexidade com que os animais se exprimem. Expectativas para o filme? Zero. Só esperava mesmo sentar-me na sala de cinema e ter uma experiência minimamente engraçada e ternurenta. 

No entanto, o crescendo de popularidade fez disparar as sirenes, e ao longo de quase um ano foi ganhando tração em prémios e honras maiores que geraram ainda mais barulho. Claramente, já não podia pensar em ver este filme só com um par de olhos, alguns neurônios ativos para absorver a componente conceitual eram requisito. Nisto, devo dizer que a minha regra costuma ser evitar todas as correntes “mais conceituais”, seja em que meio artístico for. Tenho o meu ceticismo em certa medida com as artes conceituais. Contudo, com Flow o interesse crepitava a cada semana anterior à estreia em Portugal, precisamente pela componente comunicativa do seu elenco.

De facto, fiquei fascinada. Sem uma única palavra, as personagens comunicam com a linguagem corporal que a experiência a cuidar de animais nos ajuda a decifrar. Por um lado, acho que ainda podiam ter ido um pouco mais longe, pois temos momentos onde senti que desligavam essa camada que, na minha opinião, é crucial para o storytelling deste filme. Como não temos comunicação de outra forma, tudo o que depreendemos depende muito da animação que aqui não se cinge aos expressionismos cartoonistas, procurando antes mimicar um pouco mais o comportamento real e os maneirismos dos bichos. 

Então, há ações na animação que, por um lado, são genéricas e um pouco emperradas quando podiam ter mais estudo para embutir alguma personalidade. Noutras situações onde a calma se instala para termos tempo para absorver o estado de espírito dos animais, há também um receio em aprofundar muito essa representação. Nesses momentos, principalmente, esta camada de que falei podia ir um pouco mais longe, mas pronto, não fico de todo desiludida ou desanimada. Fico feliz por ver, finalmente, um filme onde os animais nos contam a própria história sem necessidade de tradução para linguagem humana. Claramente, os humanos da Dream Well Studios e, em especial, Glints Zilbalodis também partilham desta ligação especial com os bichanos.

Face ao constante desafio de comunicar os estados de espírito dos animais, há uma preocupação de manter a nossa atenção abstraída do mundo em redor. Nisto a solução foi criar uma abordagem mais “minimalista” de recreação dos cenários envolventes. Não muito populosos, mas suficientemente descritivos para depreendermos tudo o que precisamos de saber acerca dos mesmos em pouco frames. 

Outra vertente que teve de se adaptar a este abordagem, foi a banda sonora. Quase ausente do filme, só nos acompanha com alguns laivos pontuais e pouco mais, para nos deixar a sós com o ambiente, os animais, e a nossa subjetividade. A preocupação aqui foi transportar-nos para o meio da ação, e envolver-nos no meio ambiente já que a jornada sonora é, também, muito descritiva e fulcral na construção da trama.

Nisto, está claro, Zilbalodis tece um enorme panorama simbólico e profético que, talvez por mexer com os animais, nos toque mais perto do coração. Falo do “vilão” (se é que assim lhe podemos chamar) que, embora no filme retrate um ciclo completo, a realidade é devastadoramente atual. Com as chuvas torrenciais e inundações no hemisfério norte, e o tórrido verão que se faz sentir na terra dos nossos irmãos brasileiros, o clima extremo está a complicar a vida de biliões de espécies que compartilham connosco este cantinho na Via Láctea.

O que me chocou, no entanto, neste retrato, foi a ausência humana, embora os seus vestígios tivessem presença constante no ecrã. Faz-nos divagar acerca do que poderá ter acontecido, e porque deixámos os nossos companheiros de 2 ou mais patas para traz. Em certa medida, Flow consegue retratar um companheirismo entre espécies nato da ordem dos mamíferos, mas mais humano que os próprios entre si.

CONCLUSÃO
Magnífico
8
Joana Sousa
Apaixonada pelo mundo do cinema e dos videojogos. A ficção agarrou-me e não me largou mais! A vida levou-me pelo caminho da Pós-Produção, do Marketing e da organização de Eventos de cultura pop, mas o meu tempo livre, dedico-o a ti e à Squared Potato.
flow-analiseSem única palavra, Flow comunica-nos na linguagem dos animais sem necessidade de tradução humana. Um filme altamente conceitual, que nos deixa a sós com o ambiente e o seu encantador elenco. Navega por uma trama onde a animação é a chave para toda a comunicação e subjetividade da obra.