Quando pensamos em cultura japonesa, talvez não nos venha imediatamente à cabeça a marca Kit Kat. Mas com certeza que, caso tenhas ido ao Japão, uma das primeiras coisas em que pensaste foi em provar os Kit Kat de vários sabores “únicos” ou em trazê-los como lembrança para alguém. Se calhar, até foste tu o receptor dessa lembrança.
Ora, nunca te perguntaste a que se deve esta relação tão especial entre o país e a marca de chocolates (originalmente) britânica?
Pois bem, em honra dos 90 anos da Kit Kat comemorados em agosto deste ano, vou revelar-te tudo sobre a sua origem e explorar o fenómeno que se tornou tão comum que poucos o questionam nos dias de hoje.
Entrada no Mercado

Em 1973, 50 anos após a sua criação pela companhia Rowntree (que viria a ser comprada pela Nestlé em 1988), os Kit Kat entraram no mercado japonês através da empresa de confeitaria Fujiya.
Na altura, o seu gosto adocicado não apelou ao paladar dos locais, que estavam habituados a sabores mais neutros e a chocolates “não demasiado doces”.
Comercializados como um snack para adultos e uma iguaria estrangeira, com o slogan “Entre refeições, coma um Kit Kat”, os chocolates de wafer não pegaram de todo com o seu público-alvo e, durante quase 30 anos, apesar dos esforços da marca, as vendas de Kit Kat no Japão foram um autêntico fracasso.
Revolução no paladar
No ano 2000, a Nestlé tomou um grande risco ao criar o primeiro Kit Kat de sabor a morango, utilizando sumo de morango desidratado em pó misturado com chocolate de leite. Foi um momento histórico para a marca (tratando-se de uma altura em que os chocolates frutados eram pouco habituais) e viria a mudar completamente a trajetória destes doces até ali.

O novo sabor foi introduzido no mercado no início da época dos morangos, exclusivamente na ilha de Hokkaido, no norte do Japão, um local altamente turístico e cheio de potencial de vendas. A sua cor rosa chamativa e o gosto frutado tornou-o num êxito, tanto entre locais como entre turistas, e a partir daí a Nestlé nunca mais parou.
Sabores regionais

O sucesso do Kit Kat de morango deu a ideia à equipa de marketing de criar sabores exclusivos para certas regiões do país, servindo não apenas como snacks mas também como lembranças para viajantes domésticos e internacionais.
Como faz parte da cultura japonesa utilizar shun (ingredientes sazonais) na comida japonesa, a Nestlé decidiu utilizar a mesma tradição para os Kit Kat, homenageando os símbolos gastronómicos de cada prefeitura.

Surgiram os sabores de chá verde matcha para a prefeitura de Osaka, wasabi para Shizuoka, momiji manju (um doce local feito de trigo sarraceno e arroz) para Hiroshima e feijão azuki para a região de Hokuriku.
Outros sabores de renome incluem: melão para Hokkaido, batata doce roxa para Kyushu, laranja iyokan para Ehime e cerejeira em flor (sakura) para Fukushima.

A empresa não só experimentou com diferentes sabores mas também com os níveis de açúcar, adaptando-os ao paladar e preferências dos japoneses, produzindo-os em porções mais pequenas que o original.
Yasumasa Takagi
Em 2003, um dos grandes pontos de viragem dos Kit Kat deu-se com a contratação do chef de pastelaria clássica Yasumasa Takagi, dono das localizações Le Patissier Takagi.

O objectivo era criar novos sabores e combinações de Kit Kat inovadores que pudessem maravilhar o consumidor, confiando nos largos anos de experiência do chef, aliados a um plano criativo extenso. O primeiro sabor criado por Takagi foi o de maracujá, lançado em 2005.
Contudo, nem todos os sabores engenhados por ele acabaram por receber luz verde… Pelo que podes imaginar a quantidade de protótipos pelos quais este passou até chegar aos produtos finais!
Desde a sua chegada, o chef já criou mais de 50 sabores hoje comercializados.
Chocolaterias Kit Kat
A primeira Chocolateria Kit Kat abriu em 2014 em Shibuya, com receitas concebidas pelo chef Takagi, expandido depois para outras cidades e países (incluindo Austrália, Reino Unido, Brasil e Canadá).

Nestas localizações especiais, os visitantes não só têm a oportunidade de adquirir os sabores mais premium, elegantes caixas para presente e uma experiência mais personalizada, como também podem criar o seu próprio Kit Kat!
Algumas incluem ainda uma zona de cafetaria onde é possível experimentar diversas comidas e bebidas, todas artesanais. Entre as mais famosas: o Chocolate Quente Ruby, inspirado no KitKat Ruby Sublime, e o Parfait Matcha Supreme que inclui pedaços de Kit Kat Sublime Matcha e Kit Kat Sublime Amargo.
Infelizmente, muitos destes locais já se encontram encerrados, mas terão sempre um cantinho guardado nos corações dos amantes de chocolate!
Edições limitadas
Seguindo o êxito destas várias experiências, a Nestlé Japão decidiu ir mais longe ainda e criar sabores limitados, os quais só poderiam ser obtidos num curto espaço de tempo, mas disponíveis em todo o país. Este sentimento de escassez e raridade contribui imenso para a popularidade dos Kit Kats.

Todas estas estratégias podem parecer-te um plano ganancioso para extorquir o máximo de lucro aos amantes de chocolate e exclusividade, mas Takagi assegura que não é isso que o move:
‘Em última instância, eu quero fazer as pessoas sentirem-se felizes, comovidas e surpreendidas. A não ser que haja uma grande variedade de Kit Kat, não é possível que haja uma grande variedade de pessoas felizes.” – Yasumasa Takagi
Os sabores mais… estranhos

Porém, nem todos os sabores criados pela Kit Kat são bem recebidos: por exemplo, o sabor de rebuçado para a tosse, introduzido em 2017 para os fãs de futebol japoneses que quisessem gritar pela sua equipa, até ficarem com dor de garganta, foi um completo falhanço.
Em contraste, o Kit Kat de molho de soja, que poderá soar-te estranho e intragável, foi o sabor número um vendido no Japão em 2010.

A título de curiosidade, o processo de criação de novos sabores, desde o próprio conceito até ao momento de comercialização em loja, demora cerca de 6 meses.
“Temos muitos clientes que esperam ansiosamente pelo próximo novo sabor e se perguntam ‘Qual será, qual será?’ Muitas pessoas dizem ‘Quero comprá-lo logo’” – Yuji Takeuchi, antigo marketing manager da Nestlé Japão
Uma coincidência linguística
Outro grande ponto de viragem do Kit Kat deu-se devido a uma coincidência linguística.
No início dos anos 2000, ocorreu um pico nas compras de Kit Kat, especificamente na região sul do Japão, e apenas durante os meses de Janeiro e Fevereiro. Isto deixou toda a equipa de marketing completamente confusa. Porquê a popularidade repentina nesta altura tão específica?
Vieram a perceber que se tratava da época de exames (“Juken”) e que a compra dos chocolates tinha sido feita exclusivamente por estudantes.

Aparentemente, “Kit Kat” (“Kitto Katto”) tem uma pronúncia muito semelhante a “kitto katsu” (きっと勝つ), que significa algo como “vais ganhar de certeza” ou, mais simplesmente, “boa sorte” em japonês. Isto levou os estudantes a obtê-los em massa – não para serem consumidos, mas para levarem consigo como amuletos da sorte para o derradeiro dia.
A moda pegou e, agora, todos os anos durante Janeiro e Fevereiro, a venda de Kit Kat sofre uma explosão por todo o país.
Correios

A Nestlé decidiu tirar proveito da situação e, em 2009, associou-se aos Correios do Japão, para que pais pudessem enviar Kit Kats para os filhos diretamente através do “Correio Kit Kat”, disponível em mais de 20000 localizações.
A embalagem passou a incluir um espaço em branco para escrever mensagens de encorajamento (algo semelhante a postais) e, ainda hoje em dia, esse espaço existe em vários Kit Kats comercializados durante esta altura.
Outros já vêm com mensagens pré-impressas na embalagem, como “Dá o teu melhor!”, “Acredita em ti!” ou “Vai correr tudo bem!”.
Esta campanha ganhou à Nestlé e à JWT Tokyo vários prémios, como o Asian Brand Marketing Effectiveness Award em 2005 e o Media Grand Prix no 56º Festival de Publicidade de Cannes em 2009.
Hoje em dia, de acordo com estudos, cerca de 1 em 3 estudantes compra Kit Kat durante a época de Juken, e 1 em 5 leva o seu Kit Kat para a sala de exame.

Durante algumas campanhas especiais, foi ainda incluída uma pirâmide de plástico dentro do Kit Kat que, quando colocada sobre o ecrã de um telemóvel e após o scan de um QR code especial, mostrava um holograma de cantores a dançar e a cantar uma música escrita especialmente para encorajar os estudantes nestes tempos difíceis.
O grupo DISH// e o cantor Naoto Inti Raymi foram dois dos convidados para estas iniciativas.
Nos próximos anos, a venda de Kit Kat aumentaria 50%.
Colaborações de renome
Para obter os produtos de melhor qualidade e criar os sabores mais delicados, a Nestlé fez várias parcerias com chefs japoneses famosos, produtores de matcha premium, fabricantes de sake tradicionais, entre outros, acabando por cimentar o estatuto de luxo da marca Kit Kat.
Em vez de serem vistos como um chocolate normal, passaram a ser vistos como uma experiência gourmet e de cariz artesanal, um doce sofisticado e luxuoso, que nada tem a ver com a versão ocidental.

No ano passado, a Kit Kat tornou-se na barra de chocolate oficial da Fórmula 1 e fez agora, em outubro, a sua primeira aparição no Gran Premio de La Ciudade de México 2025.
O duplo sentido de “break” enquanto “pausa” e “travão” levou a esta divertida associação, que já tinha sido explorada quando um dos corredores de maior sucesso da história da Fórmula 1, Sergio ‘Checo’ Pérez, se tornou embaixador da Kit Kat em 2023.
Elementos de pop culture
A marca também não se esqueceu do seu lado juvenil, criando colaborações especiais com franquias como Pokémon, Attack on Titan e One Piece, o que gerou imenso interesse por parte dos mais jovens. A inclusão de elementos de manga, anime e videojogos, e a difusão por meio de redes sociais e outros canais online, foi extremamente eficiente na inclusão das gerações mais novas, numa experiência que tinha, inicialmente, sido reservada para adultos.
Coleção de dialetos Kit Kat
Mais recentemente, durante a pandemia, a Nestlé lançou uma coleção de dialetos Kit Kat para que cada prefeitura pudesse ser representada e tivesse um elo de ligação durante aqueles tempos mais conturbados.
Foram lançados 47 ao todo, cada um com a mesma mensagem (“Faz uma pausa”) escrita em diferentes dialetos. Os sabores incluiam mommi manju (bolo de ácer com pasta de feijão vermelho) de Hiroshima, pêssego de Tokushima, nohonshu (vinho de arroz) de Toyama, umeshu (vinho de ameixa japonesa) de Wakayama, cereja de Yamagata, cítrus de Yamaguchi e cheesecake de morango do Monte Fuji de Yamanashi (embrulhado numa embalagem em forma da montanha).
Os fatores por detrás do crescente sucesso da marca
Marketing
Muito do sucesso da Kit Kat deveu-se a uma simples decisão executiva: em vez de tentarem impor sabores estrangeiros no país, enalteceram o que de melhor existe no Japão para uma celebração além de fronteiras que está sempre a inovar e a criar novas combinações, fomentando uma constante e enorme antecipação, tanto para os locais como para os visitantes.
Para optimizar ainda mais este processo, a Nestlé sempre apostou na divulgação da marca, colocando os seus produtos e promoções em zonas de grande tráfego e destinos turísticos para o máximo de alcance aos consumidores.
Formou ainda parcerias com lojas de comércio como a Rakuten e Amazon, facilitando o acesso à sua variada gama de produtos aos consumidores locais e internacionais.

A criação de lojas pop-up temporárias também foram uma fantástica aposta, proporcionando experiências interativas, como o teste de novos sabores, demonstrações ao vivo da confecção do produto, venda de artigos exclusivos e ainda uma criação personalizada de chocolates únicos pela mão do próprio cliente.
A personalidade japonesa
Os consumidores japoneses são conhecidos pela sua vontade de experimentar coisas novas e diferentes, o que vai de encontro ao que a marca representa no país: a constante produção de novos sabores, edições limitadas e combinações arriscadas que apelam à curiosidade e ao entusiasmo.

Os diferentes sabores e edições limitadas também fomentam um sentimento de coleccionismo, de exclusividade e novidade, criando um mercado de procura constante. Existem sabores que apenas podem ser experienciados uma vez, por conta do término da sua comercialização, o que leva ao sentimento de urgência.
Não só isso, mas a criação de sabores sempre esteve intrinsecamente ligada ao povo japonês e às suas preferências, mas também às tradições do país. A Nestlé Japão teve o cuidado de seguir as tendências de mercado sem nunca descurar das suas raízes, e isso fez toda a diferença.

A constante preocupação oriental pela saúde e fitness levou à produção de opções baixas em açúcar, altas em proteína ou com a adição de ingredientes considerados saudáveis e naturais, em contraste com a artificialidade da maioria dos chocolates comercializados.
Uma experiência sem igual
Hoje em dia, estima-se que 20 novas variedades de Kit Kat sejam criadas por ano no Japão, com trocas de sabores a ocorrerem a cada dois meses.
No total, existem mais de 450 sabores de Kit Kat exclusivamente no país; cerca de 40 desses sabores estão disponíveis todo o ano no Japão, com 20 a 30 a rodarem durante as várias estações e épocas festivas. Os sabores mais comuns incluem matcha, hojicha e trigo inteiro.

Já nos sazonais temos daifuku de morango e pistachio (vendidos no inverno), sakura e ameixa japonesa (vendidos na primavera), sal marinho e gelado de bolacha e chocolate (vendidos no verão), e castanha e tarte de maçã (vendidos no outono).
Durante as festas, podes encontrar o Pai Natal, o chocolate de Ano Novo, o Otoshidama (com embalagem que se assemelha ao envelope vermelho onde crianças recebem dinheiro de oferta), banana de Páscoa, urso com corações, e Halloween.

São, ainda, comercializadas versões para adultos (Otona no Amasa) que são menos doces que as normais e incluem chocolate negro, matcha profundo, morango, chocolate branco, framboesa e caramelo.
Também tens os famosos Kit Kat que vão ao forno, que se tornaram numa verdadeira revolução quando foram inventados. O chef Takagi ensina-te como os fazer facilmente no vídeo abaixo:
Um mercado volátil
Outra razão pela qual a comercialização de edições limitadas é tão popular e lucrativa para a Nestlé prende-se com o mercado das lojas de conveniência (konbini).
Hoje em dia existem mais de 50,000 konbini por todo o Japão; na sua maioria, bem perto umas das outras, pelo que a concorrência é extremamente grande.

Devido ao seu reduzido tamanho, as lojas são obrigadas a ter stock limitado e os seus produtos estão constantemente a competir uns com os outros: caso um produto não venda imediatamente, não volta a ser comprado pela loja, sendo substituído por outro de maior procura. Não existe espaço para stock que permaneça nas prateleiras durante muito tempo, pelo que os donos de konbini estão sempre à procura de coisas novas e interessantes no mercado.

É aí que entram as edições limitadas de Kit Kat: sabores diferentes e excitantes, que vendem rápido por serem novidade, mas que provavelmente não seriam populares o ano todo, levando a uma queda de vendas após a loucura inicial. Assim, a Nestlé certifica-se de que os seus produtos têm sempre procura, e os estabelecimentos comerciais vendem tudo, nunca acumulando stock desnecessário.
Oferta de presentes
A cultura japonesa dá imensa importância à oferta de presentes, seja durante épocas específicas do ano ou durante ocasiões especiais que podem ir desde eventos importantes a pequenas conquistas pessoais e profissionais.
É uma forma de mostrar gratidão, respeito e de fortalecer relações com família, amigos e, até, colegas e chefes no trabalho. Não só é esperado, como também constitui uma grave ofensa não oferecer nada quando voltamos de viagem ou celebramos certas alturas festivas.

Existem vários tipos de presentes: omiyage são lembranças trazidas de viagens, temiyage são presentes quando se visita a casa de alguém, ochugen são oferecidos no verão como forma de apreço e reconhecimento a pessoas importantes na nossa vida, e oseibo são dados do inverno pela mesma razão.
Omiyage é, tipicamente, algo produzido localmente ou algo pela qual uma região é conhecida, um conceito que encaixa perfeitamente nos Kit Kat engenhados pelo chef Takagi e a equipa de marketing.
Pelo que a Nestlé não perdeu tempo em explorar ao máximo essa tradição com os seus chocolates:
Continuou a lançar mais e mais sabores sazonais e edições limitadas de Kit Kat, para que quem visitasse esses locais ou o país durante certas épocas pudesse adquiri-los, e abraçou totalmente a época de Juken, criando campanhas especiais durante Janeiro e Fevereiro, as quais também coincidem com a altura das sakuras (cerejeiras em flor).
Os chocolates podem ser encontrados um pouco por todo o lado, desde centros comerciais até boutiques de luxo, onde versões embrulhadas em ouro estão disponíveis para ofertas de luxo ainda mais exclusivas.
Importância cultural
Kit Kat não representa apenas um companheiro para estudantes nervosos ou um tesouro para os turistas à procura dos sabores mais exóticos: trata-se de um autêntico símbolo nacional, e tudo porque a equipa de marketing percebeu o que povo japonês queria e já fazia, cabendo apenas amplificar essa ideia.

O que antes se tratava de um chocolate mediano estrangeiro sem qualquer valor para os locais, tornou-se num completo fenómeno global depois de sofrer uma reinterpretação social e cultural. Não tivesse a marca abraçado esta adaptação estratégica, provavelmente hoje não existiriam sequer sinais de Kit Kat no Japão.

As excelentes campanhas de marketing, colaborações estratégicas e utilização de elementos de pop culture, o sentimento de escassez e raridade, em conjunto com o de nostalgia e a inspiração pelas próprias tradições japonesas, tornaram a marca número 1 de vendas de doçaria em território nipónico, perfazendo cerca de 6.1% de todo o mercado de confeitaria, ultrapassando todas as outras marcas locais, incluindo a muito mais antiga Meiji.
Atualmente, os japoneses compram, em média, 5 milhões de Kit Kats por dia. E tu, achas que está na hora de fazer uma pausa?


































