O fim de Sons of Anarchy deixou-me vazio, mas não por uma sobrecarga de emoções. Quando terminei este “drama shakespeariano sobre rodas” senti que deixava para trás pessoas que conhecia. Senti que conhecia o Jax, o Chibs, o Tiggs, o Happy e tantos outros que compunham o catálogo das personagens de Sons of Anarchy. Senti que acompanhei uma fase essencial na vida de cada uma destas personagens.

Foram sete temporadas de sangue, morte, lágrimas e muito combustível gasto em viagens de mota. Dava por mim a rever montagens de vários quadros desta série, a ver entrevistas e a acompanhar ansiosamente quando é que os “ceifeiros” poderiam voltar de uma maneira ou de outra. Não fiquei indiferente a Sons of Anarchy.

Mas esta era uma esperança pífia da minha parte. Afinal, a história de Kurt Sutter, criador da série, era fechada, e, apesar de deixar alguns pontos narrativos em aberto, era uma história que dava um fim satisfatório às personagens, e qualquer tipo de continuação seria de mau gosto.

Portanto, a minha surpresa ao ver que Mayans M.C. fazia parte do catálogo de lançamento da HBO Max em Portugal veio acompanhada com uma certa reticência da minha parte. Apesar de querer voltar a este universo de motards, estava inseguro relativamente à qualidade da série, e de como trataria do legado que Jax Teller deixou para trás.

Não obstante, despi-me de qualquer tipo de preconceitos e embarquei nesta jornada de volta às estradas que Kurt Sutter desenhou em 2008.

E se estava com qualquer tipo de dúvidas relativamente à longevidade desta série, estava redondamente enganado. O que é facto é que Mayans M.C. chega agora ao fim com a sua quinta temporada, naquela que foi uma série de muito sangue, traições e, surpreendentemente, vários jogos de poder.

Kurt Sutter regressa mais uma vez ao papel de criador e argumentista da série e, desta vez, é acompanhado por Elgin James, cuja ascendência latino-americana e passado problemático abriram as portas para que a narrativa oferecesse uma visão diferente deste universo de motards.

E, de facto, é algo que o espectador sente um pouco ao longo de toda a série. Eu, pelo menos, senti. James traz a Mayans M.C. a realidade de um latino-americano e das suas mazelas, algo que Sons of Anarchy nunca poderia trazer. Há claras diferenças na forma de interação com a família, na forma de ornamentar a casa, na comida e em muitos outros pequenos detalhes que compõem a série.

O mais aparente para mim é a própria cidade em que a série se passa: Santo Padre. Situada na fronteira entre a Califórnia e o México, Santo Padre enfatiza os contrastes entre as realidades americana e mexicana, entre o “futuro” e as oportunidades, e o passado e a hereditariedade cultural.

E a história? Dois anos e meio após os acontecimentos de Sons of Anarchy, Mayans M.C. acompanha Ezekiel “EZ” Reyes, um aspirante ao grupo de motards de Santo Padre. Enquanto jovem, o futuro de EZ era promissor, uma vez que as suas capacidades académicas tornavam o sonho americano palpável, algo que, para um descendente de mexicanos, era impossível. Porém, a espiral de vingança após o assassinato da sua mãe resulta numa sentença de prisão que destrói qualquer perspetiva de futuro.

Preso a um destino cruel, EZ é um homem errante, já que procura um espaço, não só no gangue que o acolheu, como também procura desvendar quem foi o assassino da sua mãe, enquanto veste um colete de bandido que, noutras circunstâncias, não seria seu. Nesta história sangrenta e cheia de lágrimas, EZ vê-se confrontado com as suas escolhas do passado, enquanto a sua nova identidade de motard cria diversos tipos de problemas.

Assim como Sons of Anarchy, Mayans M.C. explora o peso do colete de motard. Como a autoridade que o colete confere depende do tipo de emblemas que nele estão cosidos. Da mesma forma que o membro do clube se consegue escapar de certas punições, também está sujeito a se tornar um alvo para as autoridades e gangues rivais. Também mostra que, da mesma forma que alguém que veste o colete pode ganhar tudo aquilo que sempre almejou, também pode tirar tudo, deixando-o sem nada por que lutar.

Sem contar, claro, como a hierarquia tem um certo peso no tipo de interações e relações podem ser criadas. Contudo, muito daquilo que disse só se torna verdadeiramente aparente quando a terceira temporada toma a ousada decisão de mudar drasticamente a sua abordagem.

Se as duas primeiras temporadas foram, como Elgin James apelida, uma “ponte”, um período de transição para os temas que os criadores queriam explorar, a terceira temporada é o começo de um Mayans M.C. mais sério e cru, sem medo de explorar certas temáticas que para outras obras seriam consideradas tabus.

Kurt Sutter não participou na rodagem desta terceira temporada, por um ato de “rebeldia”, como o próprio assim o apelida, para com a direção da FX. E esta é uma ausência que se fez sentir, já que parece que houve uma mudança de foco na direção da história.

Se até então a história de Mayans M.C. se desenrolava em território familiar para os fãs de Sutter, esta agora entrava num território verdadeiramente novo. O foco em personagens novas e um aprofundamento das narrativas das personagens já conhecidas deu aso a novos desenvolvimentos interessantes da história.

Até mesmo o formato da própria imagem mais se assemelhava a um filme do que a uma série de televisão. Não sei até que ponto é que a pandemia da Covid-19 teve peso nesta mudança de foco mas, honestamente, achei esta mudança ótima. Parecia que, finalmente, Mayans M.C.criava uma identidade própria, livre das amarras de Sons of Anarchy.

Mas Mayans M.C. é uma série vítima do seu próprio passado, da sua própria história. São inevitáveis as comparações com Sons of Anarchy, desde as premissas e mensagens similares aos arquétipos das personagens. O protagonista violento, mas filosófico e com coração, o interesse amoroso, o “chefe” imprevisível, entre muitos outros.

É uma faca de dois gumes: não se pode afastar muito de Sons of Anarchy, senão afasta os fãs da obra original, mas também não pode copiar. Há que haver um equilíbrio e Mayans M.C. parece ter uma crise de identidade, já que na temporada seguinte parece haver um regresso a certos hábitos já abandonados nas temporadas anteriores.

O que é uma pena, porque as atuações são boas. J.D. Pardo é EZ Reyes, e o seu silêncio introspetivo pode ser confundido com algum tipo de má atuação. De facto, é um papel que, nas primeiras temporadas, não parece exigir muito de Pardo, uma vez que a personagem tem uma fala demasiado monocórdica.

Mas tendo em conta que esta personagem acabou de sair da prisão, cujo ambiente repressivo tem bastante impacto nos presos, é natural que EZ seja mais comedido.

EZ mostra a raiva que mantém escondida nos momentos que a história o exige, e Pardo, numa palavra, assusta. E, sem querer entrar em muitos spoilers, a personagem de EZ sofre algumas mutações que exigem mais de Pardo. Gostei muito da prestação dele.

Assim como gostei das prestações de Clayton Cardenas (Angel Reyes), Michael Irby (Obispo “Bishop” Losa), Carla Baratta (Adelita) e muitas outras. Mas o meu destaque vai para Richard Cabral, que interpreta uma das principais personagens da série: Johnny “Coco” Cruz. Coco é uma personagem verdadeiramente fascinante, cheia de problemas pessoais e com grande impacto.

Desde a sua aparência até à forma de se comunicar com os seus “irmãos”, Cabral dá a Coco uma credibilidade que não é igualada por nenhum outro ator na série. Acreditamos mesmo que Coco é um criminoso, mas que, apesar da maldade com que realiza algumas das suas ações mais desprezíveis, acreditamos que há uma bondade dentro dele. É uma vítima das suas circunstâncias (em parte auxiliadas pela própria história de Cabral).

E a quinta temporada? Tendo em conta o final bombástico da quarta temporada, era imperativo que a última temporada, no mínimo, estivesse à altura. E sim, foi incrível. O peso que os acontecimentos da quarta temporada tem nas personagens é palpável e o cansaço acumulado leva a ações esporádicas. Achei que esta temporada tem as traições mais chocantes de toda a série e que as cenas de suspense são verdadeiramente incríveis.

Mas, apesar de ter gostado do final da série (além de momentos de uma ironia cruel vi muito da história de algumas das figuras mais importantes da História), achei que foi apressado. Alguns dos pontos que foram abordados mereciam alguns episódios para serem melhor desenvolvidos, o que leva a muitas coincidências convenientes para “salvar” a história. Além disso, senti falta de mais viagens de mota. É algo que está ausente nesta temporada e que eu senti bastante falta. Ainda assim, gostei daquilo que foi feito.

Um pequeno aparte: adorei as artes promocionais que foram utilizadas nesta temporada. Muito bem escolhidas e ilustrativas daquele que é o sentimento desta temporada.

Liguem os motores e vejam esta série! Mayans M.C. está disponível na HBO Max e no Disney Plus.

CONCLUSÃO
Um legado bem conseguido
8
mayans-m-c-analise-2Mayans M.C. é uma paragem obrigatória para os fãs do universo de Kurt Sutter. É uma obra com uma identidade própria, que apesar de um começo não tão empolgante quanto poderia ser, é uma obra que vale a pena ser consumida. Mas procurem não traçar paralelos com a sua antecessora, empobrece um pouco a obra. E mesmo para quem não conheça a obra de Sutter, acredito que também possa gostar. Contudo, um conhecimento da história que anterior a Mayans M.C. ajuda a compreender alguns detalhes em certas cenas, seja em diálogos, seja em personagens de Sons of Anarchy que ocasionalmente fazem uma participação. Com muito sangue e jogos de poder, Mayans M.C. garante horas de suspense sobre rodas. E apesar de um final apressado, é uma jornada que vale a pena percorrer.